Rebelião das nuvens

Quando ocorreu a revolução do 25 de abril de 1974, a região de Lafões entrou numa efervescência cultural, visível no espírito celebrativo das manifestações sociais do povo. Gregório Silvestre, emigrante português que regressava à sua terra natal depois de anos no Brasil, sentiu a necessidade de registar esses momentos que se passavam na sua terra serrana e, munido de um gravador de cassetes, conseguiu captar festividades, conversas e algumas reflexões profundas sobre o seu povo.

Este ensaio sonoro procura reimaginar a figura de Gregório Silvestre a partir do seu acervo arquivístico pessoal. Há uma ideia de reconstrução de um território através da “lente” de uma personagem desconhecida e fisicamente distante. E penso que aqui aparece algo da metodologia que Steve Feld implementa nas suas teorias sobre a acustemologia, e que é esta ideia de “ouvir as histórias da escuta”. Ou seja, ouvir o que os outros ouvem no seu contexto local e fazer uma espécie de biografia da escuta.

Este trabalho tenta abordar o repositório digital da Binaural Nodar, produto de mais de 20 anos de residências artísticas em zonas rurais do Portugal profundo, misturando-o com gravações pessoais e externas, de vários ouvintes e entusiastas de gravações de campo. Sons do carnaval de Lazarim, tambores, sinos, multidões, crianças a entrar no rio Paiva, carroças a passar e rios a correr, tudo misturado com ritmos de blocos brasileiros e outros fragmentos deformados, “glitched” e pouco claros. O som festivo e carnavalesco acompanha a primeira parte da viagem. O discurso de Gregório Silvestre, “conversa sobre os melhoramentos no lugar de Vilarinho do Monte (1979)”, articula toda a peça, propondo reflexões sobre as festas populares e a importância da sua preservação. Apesar de Gregório ter gravado este manifesto na solidão, há uma intenção de trazer a sua voz de volta ao espaço público.

Rebelião das nuvens pergunta: porque é que as pessoas sentem a necessidade de registar? Será que o que não é registado não existe? A necessidade de captar o mundo que nos rodeia esconde uma aura de medo da morte, da finitude do ser humano. Há uma confiança extrema nos aparelhos no seu papel de registo da realidade. Ora, o que acontece se as máquinas decidirem apagar os arquivos do mundo ou misturá-los a seu bel-prazer? Pensemos numa máquina que analisa os arquivos e gera relações aleatórias, que conversa com os materiais gerados pela humanidade e produz as suas próprias memórias. Bem, ela já existe, por isso porquê confiar nas máquinas?”

Luciano Piccili, setembro 2024

Luciano Piccilli é um designer de imagem e som (UBA) nascido em Misiones, Argentina em 1991. Completou estudos de pós-graduação em Música Expandida (UNSAM) e Arte Sonora (UNTREF). Recebeu o 1º Prémio “Instalações e media alternativos” da 3ª Bienal de Design da UBA. Participou de exposições na Argentina, Colômbia, Peru, Estados Unidos e Espanha. O seu trabalho sonoro foi programado pelo Proyecto Tanque, músicas para sitio específico (Arg), a galeria Ruido/Noise em Austin Texas, o festival “First Look” em Los Angeles, Califórnia e o Arquivo Digital “Water of Change” da Índia. Em 2022 participou no Festival Internacional de Som e Arte Interativa INSONORA, realizado na cidade de Madrid.

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