Martin Baus é um artista multimédia, cineasta, músico, artista sonoro, investigador, educador e curador nascido no Chile. Possui um bacharelato em Ciências Sociais com especialização em Estética Cinematográfica e Literatura (Pontifícia Universidade Católica de Chile) e uma pós-graduação em LAV: Laboratório Audiovisual de Criação e Práticas Contemporâneas (Madrid). Mora na cidade de Guayaquil, onde codirige o projeto de pesquisa cartográfica Guayaquil Analógico e os encontros cinematográficos Rialécticas.
É membro do coletivo CEIS8, dedicado à experimentação cinematográfica e processos fotoquímicos, e colaborador da revista de estudos de cinema laFuga, ambos sediados em Santiago do Chile.
O seu trabalho artístico investiga as relações entre história, materialismo e perceção, com especial destaque na experimentação sonora e no trabalho com filmes e arquivos textuais. Ministrou cursos na Pontifícia Universidade Católica do Chile, na Universidade das Artes do Equador, na Universidade Católica de Guayaquil, no Festival de Cinema Câmara Lúcida, no Festival ULTRAcinema no México e na Galeria Arte Actual de Flacso em Quito, entre outros.
CLARIAUDIÊNCIAS
NOTA PRELIMINAR
A W.S.D.A (Sociedade Mundial de Arqueologia Digital, no original World Society for Digital Archaeology) é responsável por uma prospeção e pesquisa a decorrer na área nº 4040755 da antiga Internet Interface Sphere (conhecida como Internetsphere), correspondente a cerca de 508 km2 no 40o 40’N 7055 ‘W dos parâmetros da esfera global: o antigo território português.
O primeiro procedimento para nos envolvermos com a seção exposta e extrair dados é o que designamos de “pá e picareta”. Quase como uma escavação arqueológica clássica, mas com ferramentas digitais e técnicas de programação.
Um primeiro resíduo criptografado foi encontrado na seção ou superfície exposta do chamado WASTELAND # 404, flutuando entre as camadas de 215.0 e 232.0 pixéis quadrados de profundidade.
Tivemos de recorrer à tecnologia normalmente utilizada em levantamentos de dados obsoletos. Depois de usar o software Bit locker 7.0 (agora obsoleto), conseguimos recuperar e aceder aos dados criptografados.
O que encontrámos foi um ficheiro de áudio altamente decomposto, o que na arqueologia clássica é, habitualmente, designado de “profundamente deteriorado”. 00:02:34 de duração, tom alto, ruído granulado, em forma de onda curta. Não é possível dizer se corresponde a uma gravação de som ou a outro tipo de ficheiro de áudio, mas pelas suas caraterísticas de codificação e compressão, podemos deduzir que pode tratar-se de um arquivo .MP3. Quem sabe o que se perdeu com a mudança da rede algorítmica dos últimos anos.
Relatório nº 1/ Sinos e pássaros
Data: 28.10.2322
Descendo mais 50.0 pixéis, a natureza dos estratos torna-se cada vez mais complexa. A densidade dos dados mudou, assim como o estado de preservação da estrutura dos mesmos. Encontrámos mais três arquivos que puderam ser recuperados com o mesmo software. Eram também três ficheiros de áudio.
A qualidade da preservação melhorou, embora haja ainda evidências de desgaste. Pelo que mostra a cartografia fornecida pela antiga equipa de mapeamento de levantamento de dados na WASTELAND#404, talvez não estejamos a chegar a algum material que deveria ser ali encontrado. É muito provável que estejamos até mesmo a destruir recursos devido à utilização do procedimento de “pá e picareta”, pois encontrámos pequenos fragmentos de som ilegíveis que podem ser resultado da rutura de camadas de dados causada pela escavação.
O primeiro arquivo de áudio mostra o que parece ser um tipo de campainha de alarme. Isso pode significar que ainda havia formas religiosas de controlo social relacionadas com o som e uma organização social baseada no tempo. É, certamente, ainda prematuro especular.
Os sinos parecem ser construídos em materiais metálicos, como a maioria dos sinos da Península Ibérica e da Europa Ocidental. A melodia é repetitiva e os diferentes sinos criam uma espécie de harmonia dentro das diferentes melodias que cada um toca. Há reverberação, embora soe como um espaço aberto. O eco dos sinos dura 23 segundos. Quase nenhum outro som é ouvido, além de alguns pássaros.
Sabe-se que se encontrarmos este tipo de dados numa determinada área da Internetsfera, as possibilidades de haver um espaço habitado por humanos tornam-se maiores. Pode haver mais do que uma camada cultural sob a seção exposta, mas para poder comprovar isso são necessários um novo método e novas ferramentas.
Nos restantes arquivos estavam presentes sons de pássaros. Pelo que pudemos apurar através dos aspetos técnicos das gravações, provavelmente eram aves de pequeno porte que viviam entre os humanos. Podemos ouvi-los perto do dispositivo de gravação de som utilizado. De alguma forma, parece que a relação entre o sujeito que grava e os pássaros é de proximidade. Há confiança por parte das aves que se aproximam muito da fonte de gravação.
Enviámos o arquivo para a E.F.A.R.O. (Organização para a Investigação de Animais Voadores em Extinção, no original Extinct Flying Animals Research Organization) para ver se podem juntar mais informações sobre as espécies e respetiva taxonomia, através do seu Software de Reconhecimento de Pássaros.
Neste tipo de situações, surge sempre a dúvida de quem poderá ter feito as gravações. E porquê. Esta segunda pergunta pode ser respondida através de novos achados.
Poderíamos extrair informações destes ficheiros de áudio sobre as relações homem-animal (especificamente homem-pássaro) num determinado período de tempo e espaço?
É preciso ir mais fundo e começar a expandir o diâmetro da escavação para encontrarmos correspondências entre as camadas de material. Isso pode levar-nos a dados mais antigos, mas também, pela nossa experiência nos últimos 10 anos de escavações na Internetsphere, aos materiais digitais que tendem a deslocar-se durante a decomposição, até mesmo ultrapassando os parâmetros de altitude-latitude.
Isso significa que ainda não podemos associar os recursos com o local nos seus parâmetros de esfera global. Seria uma espécie do Arquivo de História Natural do território português? Fará parte de um depósito nacional de pesquisa científica?
Relatório nº 2/ O que a água pode dizer-nos
Data: 04.11.2322
Na segunda semana de investigação decidimos tentar uma ferramenta diferente. O IGPR (Radar de Penetração no Solo da Internet, no original Internet Ground Penetrating Radar) permite-nos cobrir mais terreno e ir a maior profundidade. Ao mesmo tempo, não danifica a estrutura de dados, o que poderia levar a uma desconfiguração da matriz e deixar-nos apenas com fragmentos. Esta ferramenta funciona com pulsos de ondas de rádio lançadas em direção à seção exposta. Quando embatem em algo, conseguem recuperar-se. Esses dados são registados e analisados. A frequência utilizada foi de 40 megahertz para descer até aos 400.0 pixéis quadrados de profundidade.
O primeiro ficheiro que encontrámos foi um áudio com uma gravação de água em movimento. Soa como águas rasas sobre uma superfície rochosa. Provavelmente no meio de uma floresta. É possível ouvir o vento a soprar as folhas e diferentes galhos da flora envolvente. Dada a distância a partir da qual podemos ouvir o som das folhas, podemos distinguir tanto árvores altas como arbustos baixos. Também insetos e alguns pássaros. O mesmo tipo de pássaros do último recurso, mas mais distante.
Tendo em conta a profundidade do sítio arqueodigital em escavação, podemos deduzir que os ficheiros aqui encontrados têm pelo menos dois mil e cinquenta anos. Mas ainda não temos certezas quanto à função do site de pesquisa. Nenhum idioma é falado nas gravações. Nada de “música folclórica”. Não há qualquer pista cultural, além de um interesse ou mesmo reverência pela natureza e os seus sons.
Quais são as ligações entre os sinos e os pássaros, os sinos e a água? E, mais importante, qual é a relação entre o sujeito da gravação (que assumimos ser humano) e essas paisagens e objetos sonoros? Qual é a motivação por detrás dessas gravações?
Até agora, além da gravação de sinos, encontrámos, sobretudo, paisagens sonoras naturais. O que é comum em todas as gravações é o ponto fixo de gravação, que nos remete para uma perspetiva fixa de escuta. A ausência de movimento na forma de registo leva-nos a questionar a própria presença humana por detrás das gravações.
Ao assumirmos que podemos descrever uma “motivação”, estamos também a assumir uma perspetiva humana nas gravações. Ao fazer isso, damos também por garantido que podemos encontrar o comportamento social humano dentro destes recursos. Se forem gravações de uma máquina mais complexa baseada num sistema de monitorização, do qual estamos a obter apenas fragmentos que não nos permitem observar a magnitude e o funcionamento do aparelho, talvez estejamos a perder o sentido desses arquivos de áudio.
Relatório nº 3/ Conhecimento não fixo
Data: 18.11.2322
Continuando o trabalho com o sistema IGPR, nas últimas duas semanas aproximámo-nos de uma região muito densa de informações. O que poderíamos chamar de “fonte ampla” de dados. Vários arquivos foram encontrados e parecem corresponder a um núcleo de origem mais próximo. Todos os dez arquivos encontrados têm em comum o tema gravado: água. Parece ser a mesma fonte de água, provavelmente um rio, mas a abordagem muda a cada gravação. Poderíamos até dizer que a tecnologia utilizada em cada gravação varia. Um ficheiro específico chamou-nos a atenção: uma gravação debaixo de água feita com uma espécie de hidrofone.
Noutro arquivo podemos ouvir um grupo grande de pessoas a nadar e a brincar na água, na maioria crianças. As suas vozes transmitem alegria. Comparativamente com os ficheiros anteriores relacionados com a água, esta é a primeira presença explícita do homem e da sua relação com este elemento. Não temos a certeza se é a mesma fonte de água (o rio que já tínhamos ouvido antes), mas as probabilidades são altas. Qual é a relação destas pessoas com a água? Por que é que a água se tornou um elemento tão importante para registar nesta sociedade?
É interessante ouvir estes ficheiros que mostram um território onde a água estava muito presente. Podem dar-nos algumas ideias sobre a quantidade de fontes de água natural que este território possui (em contraste com a falta de fontes de água natural que temos hoje). Ao mesmo tempo, tendo em conta que, por volta daquela época, o aquecimento global – que levou à considerável mudança climática com a qual ainda estamos a lidar – estava num dos seus picos mais altos, também podem dar-nos uma ideia do quão preciosa era a água para esta sociedade.
Talvez seja um erro pensar que uma enorme quantidade de fontes de água estava à mostra naquele território, e que, pelo contrário, esta atenção à água (através dos registos sonoros que encontrámos) pode ser lida como uma preocupação pelo seu desaparecimento. Talvez estes ficheiros de áudio correspondam à única fonte de água da região, e a insistência em registá-la responda a um desejo de preservá-la de outra forma possível: como arquivo. Mas por que é que não há representações audiovisuais dessas fontes de água? Esse tipo de dados poderia mostrar-nos uma representação mais direta do território que estamos a descobrir, enquanto o som pode manter-nos numa zona de indefinição e de conhecimento não fixo.
Dado que encontrámos apenas ficheiros de áudio, para podermos compreender as coisas a partir de uma perspectiva aural,temos de abandonar a pesquisa através de uma topografia fixa, e passar a procurar, efetivamente, as questões arqueológicas através de materiais sonoros. O que podemos entender de uma cultura, sociedade ou modo de vida que dependem única e exclusivamente dos vestígios de uma atividade humana baseada no som?
Relatório nº 4/ Sons líquidos
Data: 25.11.2322
A principal atividade desta semana foi um diálogo especulativo entre os elementos da equipa de investigação, procurando entender que tipo de solo estamos a “pisar”. Para poder, efetivamente, implantar uma pesquisa baseada no som, tentámos dar um passo atrás e questionar-nos sobre a natureza dos arquivos que encontrámos nas últimas semanas de investigação. Um dos paradoxos mais marcantes diz respeito à ausência de materiais visuais ao longo da escavação. Alguns membros sugerem que podemos estar a lidar com arquivos que costumavam ter uma base audiovisual, mas cujos aspectos visuais foram, devido ao tempo e à degradação digital, apagados.
Esta ideia é baseada em alguns relatórios publicados, nos últimos anos, pela equipa de investigação arqueodigital da Universidade de Ciências Audiovisuais da Cidade do México. Basicamente, o que eles propõem é que os arquivos sonoros têm uma obsolescência mais curta e que, por conseguinte, as peças arqueo-sonoras tendem a ter uma vida útil mais longa do que aquelas baseadas em códigos visuais. Os ficheiros baseados em forma de ondas parecem perpetuar o comportamento das ondas dentro da esfera da Internet e, ao fazê-lo, preservam o fluxo de informações de maneira mais constante do que os ficheiros visuais. Essa constância ativa as partículas dos sons líquidos, transformando-os numa espécie de ficheiro sempre presente. Como se nunca tivessem passado ao estado de arquivo mas continuassem a ressoar desde que aconteceu o evento-sonoro que “capturam” e representam.
Mas voltando à questão da origem cultural e social do excerto que estamos a tratar, em certa medida, tudo indica que a origem destas gravações corresponde a uma investigação geográfica ou geológica, e sabemos que, normalmente, as ferramentas usadas nestes géneros de pesquisa incluem ferramentas gráficas, cartográficas e audiovisuais. Se estivermos errados ao especular sobre a degradação e desaparecimento das camadas visuais dentro dos arquivos, poderíamos perguntar-nos: porquê o som como meio de pesquisa?
Isso também levanta a questão de saber se estamos a lidar com material desenvolvido pelos habitantes do território ou por estrangeiros. Até agora, assumimos que os sujeitos que poderiam ter feito essas gravações tinham uma relação estreita com o território e que a mesma era mantida ao longo do tempo, mas, neste ponto da investigação, todos os detalhes devem ser examinados.
Mesmo que ainda não possamos afirmar com certeza que estes arquivos correspondem aos resíduos de uma investigação geográfica da área (e isso teria em conta que podemos estar a perder dados visuais), quer seja feita por residentes ou estrangeiros, essa é a opinião mais consensual dentro da equipa de trabalho. Para eliminar outras possibilidades, tentaremos ir mais longe, partindo da hipótese de que estamos perante um arquivo exclusivamente sonoro, e encontrar pistas que nos ajudem a identificar, mais concretamente, as origens, os temas e as motivações por detrás destes ficheiros.
Relatório nº 5/ Os sininhos e o ponteiro no gravador
Data: 02.12.2322
No início da última semana de investigação, encontrámos mais de trinta novos arquivos, aumentando a frequência de megahertz do IGPR em 20,5 pontos, o que nos permitiu descer mais 600.0 pixéis quadrados de profundidade. Os ficheiros localizados estavam mais dispersos e num espetro espacial do campo de pesquisa mais amplo.
Concentrámo-nos num ficheiro específico que possui correspondências interessantes com descobertas anteriores. Tanto a água quanto os sinos estão presentes, mas expressos de uma maneira muito diferente.
Pela primeira vez, a água é mostrada noutro estado que não a corrente do rio: é gravada enquanto chuva que cai no chão. Já os sinos, por seu lado, diminuíram de tamanho e já não parecem estar fixos a um elemento arquitetónico, como uma igreja. Ao invés, apresentam formas de movimento.
Além disso – e antes de explicar as nossas descobertas – um achado importante da secção da equipa que se concentrou em encontrar e reunir os resíduos deixados pelo procedimento de “pá e picareta”, que tentámos no início da escavação, poderia aproximar-nos de defender e assumir a hipótese dos “materiais exclusivamente sonoros”.
As margens e superfícies dos ficheiros foram rasgadas pelo atrito produzido pela escavação, deixando-nos apenas com uma parte desgastada do mesmo. Alguns dos fragmentos (que correspondem ao início e fim – ou caudas) ainda continham informações intactas, o que nos permitiu analisá-los. O que pudemos descobrir é que a maioria dos ficheiros encontrados corresponde a uma gravação feita pelo homem. Encontrámos fragmentos que continham o que parecem ser os sons da manipulação da mão sobre o gravador de som: o clique dos dedos para iniciar e terminar cada gravação. A fricção da pele contra os materiais plásticos de que é feito o gravador.
Também encontrámos o som de passos no chão a aproximarem-se do que seria o gravador. Um ato deliberado em direção ao som. Uma decisão consciente de proximidade com certos eventos ou fenómenos sonoros.
Por enquanto, podemos descartar a ideia de um depósito de arquivo não humano. Ao mesmo tempo, podemos reafirmar a hipótese de um arquivo exclusivamente sonoro. Ainda não podemos ter a certeza das motivações que originaram estas gravações, nem se fazem parte de uma espécie de investigação sonora geográfica. E, talvez, nem devêssemos preocupar-nos em tentar responder a essas questões.
Há dois séculos, numa publicação descartada como material científico pelos círculos de investigação sobre a arqueologia do som, encontrámos uma hipótese bastante sugestiva, que nos leva a repensar, por completo, o paradigma que estamos a enfrentar. Trata-se de um tratado, com não mais do que cinquenta páginas, intitulado “Clariaudiências”, escrito pelo músico catalão, teórico do som e agitador cultural Víctor Nubla (1956-2020).
Nele, o autor pergunta-se: E se toda música (entendida no sentido mais amplo da palavra) for apenas um mapa lançado para o futuro que permitirá que as pessoas viajem no passado através do som?
E se?…
Talvez seja através de um pensamento musical que devamos prosseguir nesta investigação. Provavelmente, não estamos a lidar com um território definido – com um terreno fixo -, mas com uma maneira de nos movermos e viajarmos através dele. Estamos diante de um mapa, um mapa afetivo, que não precisa de ser examinado e analisado como um fóssil, como matéria morta. Trata-se de uma matéria cujas ondas e frequências transbordam uma noção linear do tempo e se nos revelam como um puro presente.
Temos de percorrer o mapa.
Já sobre os sininhos encontrados no ficheiro acima citado, podemos apenas dizer que correspondem a sinos de animais. Com mais análises, esses sinos podem ajudar-nos a entender perante que tipo de sociedade estamos (sedentária ou nómada, carnívora ou vegetariana, até mesmo em que tipo de relações interespécies viveu) e como a mesma se relaciona com o ato de gravar o som.
Em relação à chuva, podemos apenas dizer que é um dos principais elementos nutritivos que poderia ter evitado a situação que, hoje em dia, enfrentamos. Foi um prazer ouvir um som que, atualmente, está extinto.