Cartografias sonoras do Uruguai: O poder do som para reimaginar mapas possíveis
Verónica Rey Azambuja [1]
Universidad de la República (Uruguai)
Unidade de Aprendizagem ao Longo da Vida
Curso: Territorialidades Urbanas do Habitar
Equipa docente: Daniel Fagundez; Verónica Blanco
Montevideu, fevereiro de 2024
Índice
- Resumo
- Traços e sons no Mapa Sonoro do Uruguai
- Mapas e agências
- El Resorte: Assemblagens e permanência
- Presságios e pássaros: afeto e superstição
- Cartografias navegantes
- Redes
- Mercedes do velho “Hum”.
- Escutemos os pescadores: Lago Rincón del Bonete
- Conclusões
Fotografia: Cecilia Panizza,
extraído de Mapa Sonoro de Uruguay
extraído de Mapa Sonoro de Uruguay
Resumo
Este artigo trata de produções realizadas no âmbito do Mapa Sonoro do Uruguai (“Mapa Sonoro de Uruguay”) e de um projeto que dele derivou: “Cartografias Navegantes na bacia do Rio Negro”, com o objetivo de levantar linhas de pensamento crítico em torno aos modos de habitar e às territorialidades. A partir de uma postura híbrida e não hegemónica, são utilizados estudos urbanos e etnográficos relacionados com as abordagens da Teoria do Ator Rede (Latour, 2008) e com as multiplicidades rizomáticas (Deleuze e Guattari, 2015). O som será tratado, a partir da sua pura impermanência e incorporeidade, como parte fundamental não só do ambiente, mas também da produção de subjetividade e dos processos coletivos que são tecidos. Assim, o som adquire manifestações diversas, desde a voz de quem tem uma história para contar até à presença de elementos que se misturam e desafiam os limites dos mapas habituais.
Palavras-chave: Cartografia sonora; subjetividade; habitar; pensamento; oralidade.
TRAÇOS E SONS NO MAPA SONORO DO URUGUAI
“A água e as tecnologias que tornaram possível viver e produzir no campo, os seus refrões simples, maravilhosos e curativos (…); os sons que produziram a comida na nossa infância, as pessoas e as palavras que deixaram um vazio na saúde da comunidade. Aqueles que deixaram uma marca e, por vezes, todo um caminho percorrido por canções, versos e acordes; histórias semelhantes às contadas pela tua avó; o Castegués ou Portuñol que negámos em concursos literários e nas escolas. Paisagens retumbantes que nos trazem de volta à vida; o trabalho nas quintas e o corpo a corpo com o gado, o suor que o postal não captou. A vida que foi, a vida que é e a vida que é lembrada coletivamente; a voz de objetos e motores que já se retiraram de cena: tudo isso e o que proponhas que coloquemos no Mapa. No Mapa Sonoro do Uruguai”.
(Obtido em www.mapasonoro.uy/project/)
O Mapa Sonoro do Uruguai é um projeto que foi selecionado pelos Fundos Concursáveis do Ministério da Educação e Cultura, na categoria Memória e Tradições, na sua edição de 2016. A equipa foi composta por Cecilia Panizza no desenho gráfico, na identidade visual e na fotografia; Diego Strasser na programação; Ana Rodríguez na fonografia, produção e divulgação; e Santiago Duce na fotografia. Podemos apreciar, desde a própria descrição do projeto, a presença de imagens que interrompem o olhar hierárquico e essencialista do sujeito e oferecem ao nosso pensamento pistas de paisagens subtis e heterogéneas.
Um mapa está ligado a uma possibilidade de organização da vida e do ambiente, portanto, mostra “a nossa capacidade para formar ou deformar a realidade, é um reflexo de nossa visão do mundo” (Cerdà, 2012, p.150). O Mapa Sonoro do Uruguai expande realidades a partir das margens e dá lugar a aspetos mínimos da vida quotidiana que normalmente não são tidos em conta. Com uma proposta sensorial que se afasta da preponderância da visão, o som é uma forma de abrir caminhos para territórios e modos de existência que potencializam a nossa capacidade criativa de pensar a realidade.
O facto de acudirmos aos mapas sonoros de uma forma sensorial demonstra um gesto que não aponta diretamente para as faculdades da razão logocêntrica, mas para essa outra forma de pensamento que tem a ver com a sensação e com os afetos. Há também uma subtileza especial no que se refere ao som, em relação à sua evanescência e à sua realidade mutável e difusa. A informação sonora (Cerdà, 2012) configura a realidade com camadas de fluxos múltiplos e em movimento que coexistem, mas sem criar uma unidade. E “ler esta realidade é pôr em contacto aspetos imprevistos que estão mais próximos do imaterial do que do físico” (Cerdà, 2012, p. 146).
Desta forma, os registos sonoros com que nos deparamos terão mais a ver com a cartografia proposta por Deleuze e Guattari (2015) do que com os mapas que predominam nas visões universais do mundo. O mapa sonoro pode assim ser pensado como um rizoma, na medida em que não responde a um dado modelo ou estrutura, e sobretudo não propõe um novo modelo imitável e estático. Pelo contrário, apresenta mapas leves, movediços, com coordenadas efémeras e mutáveis, mas capazes de gerar sentidos e afetos.
Os mapas serão contingentes porque o habitar e os espaços são contingentes. Abertos ao devir, os modos de estar no mundo compõem universos (Álvarez Pedrosian e Blanco Latierro, 2013) que não param de atualizar relações e mapas possíveis. As sonoridades mapeadas transbordam desta forma o mapa conhecido do Uruguai, perfurando-o: zonas de intensidades e modos de habitar são iluminadas, entre as porosidades das fronteiras e os devires que as atravessam e que as atravessaram.
O mapa sonoro cruza contingências e torna-as audíveis. Surgem narrativas muitas vezes com vozes humanas, mas sempre combinadas com outras sonoridades que dão conta das hibridações dos territórios e do seu impacto nos modos de ser e estar no espaço. Surgem sons de rãs e grilos, bem como dialetos resultantes da mistura de línguas fronteiriças. A sonoridade dos metais e dos instrumentos de trabalho. A relação com o meio ambiente e os animais do campo; com a água e as sonoridades do rio. A produção de subjetividade a partir de canções que viajam no tempo, carregadas de afeto e memória. Avós, tradição, o que já não é, mas que de alguma forma permanece. Todos eles são itinerários estranhos (Álvarez Pedrosian e Blanco Latierro, 2013) e intensivos que conectam o presente e o passado com traços impensáveis, mas atuais.
A pluralidade narrativa torna-se inevitável. Longe de gerarmos centralidades discursivas, temos a oportunidade de desdobrar os seus significados para expandir a nossa capacidade de perceção e de pensamento. Os extremos das comunidades são continuamente alterados, e o papel da narrativa, segundo Salazar (2011), é o de abrir espaços nesses extremos, sem prescrever verdades fechadas em si mesmas.
Desta forma, podemos atender aos modos como as comunidades se narram (Salazar, 2011) sem endurecer processos e sem encapsular significados. As narrativas, tal como os mapas, abrem-se ao futuro, partilham a sua errância e indeterminação. Permanecem abertas às forças e entidades que atuam dentro e fora dos territórios, marcando ou sugerindo possíveis linhas de fuga. “Pois não se trata de estabelecer uma terra prometida, mas um caminho particular onde o sentido emerge, iluminando momentaneamente o carácter histórico e político de uma ação que se responsabiliza pelos outros sem os sujeitar” (Salazar, 2011, p.106).
MAPAS E AGÊNCIAS
El Resorte [2]
El Resorte é um lugar “construído pela amizade”, onde a memória e a música – especialmente o tango – são celebradas. O boliche, como lhe chamam os locais, é propriedade da família Soarez, uma família de Tacuarembó, empenhada em manter vivas a música e a cultura locais. Situado no bairro Centenario, o bar serve de ponto de encontro para a chamada geração boémia de Tacuarembó, aqueles músicos e cantores de boliche que se “perderam com o passar dos anos”.
Como ponto de encontro da canção do Povo, El Resorte alberga uma riqueza estética povoada de referências à cultura e à música tradicionais, entrelaçadas com alusões à paixão da família pelo ciclismo. Objetos tão heterogéneos como troféus e bicicletas, guitarras, televisões, bebidas e bandeiras convergem com corpos e entidades que expõem o carácter híbrido do espaço onde, segundo Farías (2011), o social acontece. El Resorte mostra-nos uma forma de assemblagem urbana que dá conta de como as associações entre entidades humanas e não-humanas (Latour, 2008) produzem a emergência de novos espaços e novas formas de ação coletiva.
Assim, a cidade adquire uma noção de multiplicidade e de mobilidade que a desprende da imagem de um exterior (Farías, 2011), mostrando que pode entrar e ser encontrada dentro de um determinado recinto. E, ao mesmo tempo, não deixa de se dissipar noutros espaços simultâneos. Assim, o urbano, como o social – segundo Latour (2008) – não são coisas dadas, outrossim emergem nessas associações que entrelaçam e concatenam corporeidades, materialidades e semióticas (Farías, 2011). Nem os atores nem os objetos são sociais em si mesmos, porque o social está nas ligações e significados que se criam na hibridação de todos eles.
É importante destacar como, em um lugar como El Resorte, dedicado à preservação da memória e da tradição, novos acontecimentos e significados são gerados sem entrar em contradição com a permanência. Entre objetos que testemunham e celebram a passagem do tempo; um devir (Deleuze e Guattari, 2015) sempre os atravessa.
O social não pode ser reduzido a um tipo de entidade ou meio como a intenção, o significado ou a comunicação. Pelo contrário, as relações sociais implicam relações de força entre os diferentes elementos emaranhados, que tornam possível a sua interação” (Farías, 2011, p. 18). Como os acordes de um velho tango que fazem as guitarras vibrar e voltar a tocar num novo tempo e lugar; e as ondas sonoras, invisíveis, viajam e alteram o espaço.
Presságios e aves: Afeto e superstição na Estação de Migues
“Os sinais na vida quotidiana o que nos dizem do que está para vir?”
Este registo reúne alguns dos habitantes de Estación Migues, Canelones, que, sob a forma de pequenas histórias, trazem para o presente crenças e costumes que se tinham no tempo de antigamente. A narração realiza-se sob a forma de uma conversa que lhes permite tecer a história entre as suas próprias memórias e as dos outros. As histórias baseiam-se em memórias das suas casas de família e de vizinhos que têm a ver com o que no passado estava associado à presença e ao canto de certos pássaros, considerados como sinais do que poderia acontecer no futuro. “Agüerías” é o nome que Héctor propõe para o tema da conversa, um conceito ligado às crenças ancestrais comuns em muitas culturas indígenas e transmitidas de geração em geração, como forma de compreender o mundo e prever o futuro.
Pouco importa neste mapa a validação de alguma verdade verificável, mas sim aquilo que é narrado a partir da terra de origem, das suas tradições e histórias (Benjamin in Salazar, 2011). Segundo Salazar (2011, p.103): “o que é narrado é a memória dos afetos, dos encontros e das separações com os outros”, a narração tem o poder de instituir uma memória e articular uma história própria.
Do lado das verdades da racionalidade positivista, estas histórias mostram-nos a mistura e a impureza dos encontros e dos devires que produzem multiplicidades, populações e contos (Deleuze e Guattari, 2015). As narrativas tradicionais não reverenciam os poderes transcendentalizados (Salazar, 2011), mas fazem o seu caminho através da simpatia de contornar as leis divinas ou fazer uso da natureza para enfrentar o seu destino.
As histórias são povoadas de presenças (Salazar, 2011). O canto do benteveo, o voo dos teros, o som do mocho ou mesmo uma tempestade. Presenças que transportam afetos e velocidades que, neste caso, ultrapassam o humano, para abrir o espaço a uma zona de indeterminação ou incerteza. “Algo comum ou indiscernível, um ambiente que torna impossível dizer onde passa a fronteira entre o animal e o humano” (Deleuze e Guattari, 2015, p. 275). Os elementos mágicos ou sobrenaturais que configuram as superstições têm a ver com essas formas de habitar tão próximas do desconhecido, de outras naturezas. Nas palavras de Salazar: “na narrativa, cria-se uma memória coletiva e não se afirma um apego definitivo aos princípios fundamentais de qualquer moral” (2011, p.105).
Quem conta estas histórias, quer acredite ou não, conhece bem estas crenças, porque fizeram parte da sua infância e foram repetidas como avisos ou presságios. Muitos deles dizem que não acreditam em tais coisas, mas que acontecia, acontecia. “Talvez seja superstição, mas eles viveram-no, talvez fossem mais sensíveis e por isso ouvissem mais. Não havia rádio nem televisão, as pessoas eram mais percetivas ao que ouviam e ao que viam. Ainda subsistem superstições daquelas de antes.
Podemos atribuir a estas superstições o que Salazar (2011) atribui à moral, como “um ato de memória exteriorizada (que) desliza para o futuro de uma forma muito mais subtil do que a prescrição normativa, mas muito mais poderosa na sua capacidade de afetar” (p. 105). Não é por acaso que, de acordo com a sua etimologia, a palavra superstição deriva do latim superstitio, ou seja, aquilo que permanece, aquilo que sobrevive à passagem do tempo.
Cartografias Navegantes
Cartografias Navegantes é um programa realizado no âmbito do Fundo Concursável da Iniciativa para o Rio Negro. Propõe atividades culturais que abarcam a experiência do som na paisagem, a filmagem de entrevistas, a arte postal e a cartografia coletiva na bacia do Rio Negro. Durante os meses de janeiro e fevereiro de 2023, uma exposição desses registos esteve aberta ao público.
O projeto é dirigido pela Lic. Ana Rodríguez e Lic. Manuel Gianoni. como “Fortalecimento da Comissão da Bacia do Rio Negro”; implementado pelo Fondo Concursable envolvendo o Ministério do Ambiente, o Ministério da Pecuária, Agricultura e Pescas (MGAP) e o Ministério da Indústria, Energia e Minas (MIEM) da República Oriental do Uruguai.
Os objetivos são contribuir para a gestão integrada dos recursos hídricos, desenvolver narrativas e gerar uma identidade e sentimento de pertença na Bacia do Rio Negro, através do reconhecimento dos valores socioambientais do território e da sensibilização para a perceção da paisagem nas suas múltiplas dimensões.
Redes [3]
Para se poder falar de habitar é necessário pensar num espaço, ou seja, nessa dimensão de tempo que permite às materialidades ganharem expressão e consistência. Habitar é construir, vibrar com o espaço e agir nele: “construímos edifícios e construímos sentidos para a vida e ambos estão intimamente relacionados” (Álvarez Pedrosian e Blanco Latierro, 2013, p. 3) porque com eles e entre eles se compõem os nós das redes que habitamos.
Enquanto os efeitos do positivismo empobrecem a imagem do subjetivo, reduzindo-o a uma interioridade isolada, o quotidiano é povoado por elementos que evidenciam o vínculo social que lhe é inerente (Álvarez Pedrosian e Blanco Latierro, 2013). As espacialidades permitem o encontro com outras subjetividades e agentes de múltiplas naturezas, pelo que não podem ser tratadas como desprovidas de vitalidade, mas antes como “zonas de enredamento que quebram qualquer fronteira que possamos definir entre a interioridade de um organismo e a exterioridade do mundo” (Ingold in Álvarez Pedrosian e Blanco Latierro, 2013, p.10).
O espaço está ligado ao tempo e permite-nos sustentar agenciamentos (Deleuze e Guattari, 2015), sempre abertos, mutáveis e passíveis de desaparecimento, mas produtores de sujeitos e coletividades; memória, política e poética. Habitar fornece-nos ferramentas para mapear as expressões subjetivas e dinâmicas dos espaços e “implantar uma perspetiva para a qual “o processo de desenho se dá no conjunto dos fluxos da vida “sócio-natural“” (Alvarez Pedrosian, Blanco Latierro, Fagundez D’Anello, Moreira Selva, 2023, p.104). Habitar é sempre habitar em rede, e é entre redes que a dimensão compositiva do habitar se torna percetível.
As redes relacionais evidenciam uma função comunicante que vai para além dos signos e dos regimes da linguagem. As conexões são múltiplas e articulam semióticas de qualquer natureza em tramas de mediações (Álvarez Pedrosian et al., 2023) que as conectam de formas muito diversas: “laços biológicos, políticos, económicos, etc. colocando em jogo não apenas regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas” (Deleuze e Guattari, 2015, p.13).
As redes são tecidas rizomaticamente, e um rizoma “pode ser desenhado numa parede, concebido como uma obra de arte, construído como uma ação política ou como uma meditação” (Deleuze e Guattari, 2015, p. 18), sendo sempre suscetível de ser refeito e desfeito.
A espacialidade não é dada, ela é tecida, interrompida, modificada; e no seu dinamismo geram-se diversas formas de existência, como uma justaposição de espaço-temporalidades atadas, “às vezes mudando as chaves de localização, às vezes reforçando-as” (Alvarez Pedrosian e Blanco Latierro, 2013, p.11). Torna-se evidente a importância das estéticas do quotidiano na investigação e geração de estratégias de transformação coletiva. Sujeitos, materialidades, corpos e forças não cessam de se afetar mutuamente e de gerar vínculos vitais e territoriais. Da mesma forma que o habitar e os lugares são construídos. Através do sentido.
Assim, o sujeito torna-se um sujeito de possibilidade (Álvarez Pedrosian e Blanco Latierro, 2013), não está isolado das condições e relações do seu meio, mas também não está fixado nelas. A trama relacional afirma a possibilidade criativa e transformadora que tudo o que existe na realidade tem sobre ela. Aberto à força informal da adventícia, o sujeito “pode transformar determinações, pode criar novas condições, materialidades e significados, pode habitar. Habitar é construir sentido” (Álvarez e Blanco, 2013, p.8).
Mercedes do velho “Hum”
Este mapa está localizado na cidade de Mercedes, um lugar que tem uma relação especial com o maior rio interno do Uruguai: o Rio Negro. Ouvimos a história de uma mulher que nos conta em poucos minutos o que o rio é e significa para ela, assim como para todos aqueles que tiveram a oportunidade de nascer nestas terras ou de viver perto dele. A história abre um espaço de misturas temporais mas também étnicas: Mercedes del viejo Hum contém vestígios das populações indígenas que habitavam estas terras e também ecos do nome que davam ao mundo: Hum.[4] Uma palavra que significa negro em guarani e, em guenoa, “para mim”, “para nós”: o rio que nos corre, ” rio nosso” .
Este nome sobrevivente surge também na criação de um poeta que escreveu, num tempo diferente do dos povos indígenas, um canto para a sua cidade, “Viejo Hum”, inseparável do rio que a atravessa. Hernán Viera Castro, nascido em Mercedes em 1930, constrói versos que são imagens de um antes e de um agora, distantes do nosso olhar atual, mas que testemunham uma forma de pensar e de viver entre a cidade e o rio.
Outro homem, anos mais tarde, escolhe o nome que quer dar à sua filha: Mercedes del Hum; como diz a canção, como é conhecida a terra atravessada pelo rio. Mercedes é a única que dá voz à história deste mapa, e conta-nos que o nome que o pai lhe deu foi um ato de amor. Habitar é cuidar o que cresce (Álvarez e Blanco, 2013), o que remete para reguardo e suporte.
Demonstra-se que um mapa é sempre vários mapas ao mesmo tempo, é o lugar do interstício. Um mapa torna-se “movimento dinâmico que se combina com o conceito de cruzamento de fronteiras ou intersecção de elementos móveis” (Cerdà, 2012, p.152). Assim, as extremidades e os cruzamentos geram espaços para o imprevisto, iludindo as lógicas de causa e de origem. O pensamento situado implica olhar para esses espaços, e começar a análise sempre ali, no meio.
E com sons de vento e de pássaros a misturarem-se com a sua voz, Mercedes narra:
“Acho que o rio é muito inspirador para a arte. As pessoas cantaram e pintaram para o rio. É fundamental, é o berço dos poetas. Foi assim que me chamaram, Mercedes del Hum (Mercedes do Hum). O artista está muito relacionado com isso, quando se tem espaço, porque é um lugar que nos dá a possibilidade de contemplar, de ouvir, de olhar. Dá-nos outro tempo. A arte surge nesse espaço de transição, um espaço de jogo e de contemplação. Nós somos um pouco como habitamos”.
Imagem retirada do Google
Ouçamos os pescadores: Lago de Rincón del Bonete
Este registo centra-se num grupo de pescadores de San Gregorio de Polanco e de Paso de los Toros que nos falam das suas preocupações com o crescente desaparecimento de algumas espécies de peixes na região. Por outro lado, enquanto rizoma, a história emergente pode funcionar como uma das muitas formas de entrar num mapa mais vasto e complexo que dá conta das redes e associações em que está imerso. Um mapa tem múltiplas entradas e saídas (Deleuze e Guattari, 2015). Como sempre, é melhor começar no meio das coisas, in medias res” (Latour, 2008, p.47). Um olhar situado posiciona-nos entre os departamentos de Durazno e Tacuarembó e o que passa pelo meio: o lago Rincón del Bonete.
O lago Rincón del Bonete é considerado um lago artificial, por ser um reservatório resultante da construção da primeira hidroelétrica do país, em 1945, sobre as águas do rio Negro. Com ela, foi criado o povoado de Rincón del Bonete, destinado a abrigar os trabalhadores da barragem e suas famílias, provocando um deslocamento das cidades vizinhas para o novo assentamento territorial, assim como as correspondentes redes de trabalho e de vizinhança. Dessa forma, podemos perceber que a barragem, desde a sua inauguração, atua e faz parte ativa da realidade emergente. De acordo com os postulados da Teoria do Ator-Rede (Latour, 2008), seria apropriado falar de sociotecnologia, termo que restitui esse papel ativo a entidades tradicionalmente concebidas como meros instrumentos técnicos. Com a TAR afirma-se que não é possível diferenciar o técnico e o urbano de forma enviesada, pois os agentes sociotécnicos são mediadores fundamentais dos fenómenos urbanos.
O lago Rincón del Bonete é o maior do país, e é onde os pescadores que dão voz a este mapa pescam há décadas, dizem terem tido um berço de pescadores, referindo-se a que são filhos, irmãos, netos de pescadores. A pesca artesanal é um ofício que foi passado de geração em geração, que aprenderam com os velhos pescadores que já não estão na terra e, para além da técnica, envolve um conglomerado de saberes que falam de uma relação estreita com o lago. Dedicar-se à pesca é conhecer a água, bem como os ciclos e o comportamento das formas de vida que ela abriga; é ter aprendido a ouvir e a compreender o lago. A pesca artesanal fala-nos de um modo de habitar que vai para além da moradia (Álvarez Pedrosian e Blanco Latierro, 2013), expandindo o conceito para aqueles espaços por onde transitamos repetidamente, ligando sentidos e perceções. Mesmo quando esse espaço ultrapassa a terra firme, os pescadores criaram e sustentaram práticas e recursos que lhes permitem entrar em relações de força e de apreensão num ambiente tão incerto e mutável como o rio. “Na interação com o ambiente marítimo-costeiro, destaca-se o desafio do encontro com o desconhecido, que implica uma aventura diária, e de lidar com o inesperado, com características mais dinâmicas e imprevisíveis do que as atribuídas à terra” (D’ambrosio Camarero, 2017, p.34).
É neste espaço de abertura e de incerteza que se situa o problema desta história. Os pescadores de Rincón del Bonete, perante os efeitos que a poluição tem tido na quantidade e variedade de peixes do lago, decidiram reunir-se e conceber medidas para preservar os peixes. Decretaram um mês de defeso por ano, durante o qual nenhum deles pode pescar, escolhendo o período de outubro a novembro por considerarem que é a altura do ano em que os peixes mais desovam. “É o que a gente acredita, baseado no nosso conhecimento de anos de costa, pescando e observando a água”, diz Walter, que pesca desde os sete anos de idade e cresceu na beira do rio.
Apesar dos esforços, os pescadores afirmam que o maior problema que enfrentam é a mudança brusca do nível da água quando as comportas da barragem se abrem e a água do lago passa para o rio. Como conta Wilmar, a tararira é um peixe que desova “nos baixios”, com 10 ou 15 centímetros, “porque quando os peixinhos nascem precisam da terra da margem para se esconder dos predadores”. A tararira faz um ninho oco no chão e cuida dele, no dia seguinte o nível da água desce e aqueles ovos ficam de fora, morrendo”.
Embora a mudança de nível seja necessária para a produção de eletricidade, pedem à Ute (empresa estatal de produção e distribuição de energia elétrica) que respeite o mês de defeso, pois peixes como a tararira correm o risco de desaparecer das nossas águas. “Isso mata milhões de peixes. Que o mundo saiba o que está a acontecer com os pescadores”, garante Walter que já enviou cartas a todas as autoridades e não obteve resposta, “vivemos num mundo onde as grandes corporações mandam. Não temos voto nem voz”.
D’ambrosio Camarero (2017) refere como as populações costeiras têm sido frequentemente estudadas como populações isoladas e, “no entanto, fazem parte, em maior ou menor grau, da sociedade urbano-industrial, apresentando ao mesmo tempo um certo património cultural baseado em práticas sociais e simbólicas consideradas tradicionais” (Adomilli in D’ambrosio Camarero, 2017, p.37). Para além das repercussões económicas e de qualidade de vida que o declínio da pesca tem para estes pescadores e para as suas famílias, estes habitantes das margens dos rios falam para sensibilizar as pessoas para a preservação da vida da nossa fauna aquática. Eles pedem para serem ouvidos e protegidos por uma medida que se comprometa de forma mais responsável com a realidade do Rio Negro. Isso exigiria uma racionalidade política que reconhecesse o carácter integral e multi-relacional da sócio-natureza e a importância de uma abordagem transversal que não esgotasse os recursos do ambiente do qual fazemos parte, especialmente nestes tempos de crise ambiental e de mudanças vertiginosas.
CONCLUSÕES
Os princípios de mobilidade, impermanência, conexão e composição são algumas das noções inerentes aos fenómenos do habitar e às territorialidades. Assim, a forma de os abordar deve ser alimentada por características semelhantes. Para lidar com as multiplicidades, é necessário gerar abordagens e quadros conceptuais híbridos (Cerdà, 2012, p. 153) para produzir novos modos de conhecimento.
O Mapa Sonoro do Uruguai abrange territórios urbanos e rurais, e embora o crescimento do urbano, em termos de mobilidade e forma de relacionamento, tenha transbordado essa dicotomia, a leitura ainda é dupla. A implantação cada vez mais notória das cidades necessita dos sítios periféricos que as suportam (Álvarez Pedrosian et al., 2023), os quais se retraem, mas não desaparecem por completo. É necessário aceitar os mundos como eles aparecem: misturados (Cerdà, 2012). O carácter processual da cidade, do urbano e de todos os tipos de territorialidades expõe ligações de implicação (Álvarez Pedrosian et al., 2023) entre territórios e territorialidades, bem como texturas e bordas permeáveis a novas forças e formas de configuração.
Uma poética do cruzamento e da mistura permite-nos atender à coexistência de realidades e modos de habitar territórios diversos, encontrando na estética uma forma de acesso aos mesmos. A estética brilha no impermanente e permite-nos considerar e valorizar o que aparece independentemente do seu carácter provisório. Tudo se expressa num modo absolutamente singular de aparecer no mundo, o que significa que o que acontece pode ser ouvido ou olhado, pode ser pensado. Este é o lugar a partir do qual a psicologia social, a etnografia e inúmeras outras disciplinas podem pensar: a partir do paradigma da criatividade (Guattari, 1991).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Álvarez Pedrosian, E. & Blanco Latierro, V. (2013). Componer, habitar, subjetivar. Aportes para la etnografía del habitar. Bifurcaciones, 15.
Álvarez Pedrosian, E., Blanco Latierro, V., Fagundez D’Anello, D., & Moreira Selva, S. (2023). Comunicación y subjetividad en las etnografías del habitar: una perspectiva desde los estudios culturales urbanos y territoriales. Cuadernos Del Claeh, 42 (117), 99–114.
Cerdà, J. (2012). Observatorio de la transformación urbana del sonido: La ciudad como texto, derivas, mapas y cartografía sonora. Arte y Políticas de Identidad, 7, 143–162. Recuperado a partir de https://revistas.um.es/reapi/article/view/174011
D’Ambrosio Camarero, L. (2017). Leer el mar: una etnografía habitando la costa, la tierra y el mar, con surfistas, pescadores artesanales y biólogos, en un balneario del Este de Uruguay [Tese de Doutoramento, Universidad Nacional de San Martín].
Deleuze, G; Guattari, F. (2015) Mil Mesetas. Capitalismo y esquizofrenia. Valencia: Pre-textos
Farías, I. (2011). Ensamblajes urbanos: La TAR y el examen de la ciudad. Athenea Digital. Revista de Pensamiento e Investigación Social, 11(1).
Guattari, F. (1991) “Guattari: el paradigma estético”. Revista Zona Erógena. Nº 10. Buenos Aires, novembro de 1991
Latour, B. (2008). Reensamblar lo social: una introducción a la teoría del actor red. Manantial.
Salazar, C. M. (2011). Comunidad y narración: la identidad colectiva. Tramas (México, DF), (34), 93-111.
NOTAS
[1] Verónica Rey Azambuja, nascida em outubro de 1992 em Salto, Uruguai. É licenciada em Psicologia desde 2021, pela Faculdade de Psicologia da Universidade da República. Atualmente cursa a Licenciatura em Artes Visuais no IENBA, Faculdade de Letras. Dedica-se à psicologia clínica e à investigação, direcionando o seu foco para as formas como a vida se cruza com a arte e abre caminhos e mapas inesperados.
[2] Fotografias de Cecilia Panizza, extraídas de Mapa Sonoro de Uruguay.
[3] Imagens da exposição Cartografías navegantes en la cuenca del Río Negro; Mercedes, fevereiro de 2023. Fotografias de Manuel Gianoni, obtidas da conta Instagram Cartografías Navegantes.
[4] Fonte: ¿Conoces el río Negro o Hum?