Souvenirs de Carmella

“Souvenirs de Carmella” fala da necessidade de nos compreenderem na língua que nos é própria; da possibilidade de comunicar sem existir uma língua comum com o interlocutor; do papel do estrangeiro que entra na sociedade, pedindo atenção e reconhecimento em relação à sua cultura, dizendo “Faço parte deste lugar tal como vocês”.

De muitas formas Carmella representa aquilo que sou e a minha relação com a Europa. Vinda de um lugar (Israel) que muitas vezes parece não ser nada mais do que as suas fronteiras, tenho muitas vezes a necessidade de sair para um espaço mais livre.Neste sentido, a Europa funciona para mim como uma Terra Prometida. Não está muito longe de casa, é aberta e tem cultura,é descontraída, um lugar onde não se é obrigado a lutar por tudo. Ao mesmo tempo não concordo estar na posição de “Estrangeira”. Não quero sentir que me estão a fazer um favor deixando-me ficar, pedindo-me para esquecer a minha língua, a minha cultura. Como Carmella, quero poder fazer parte e ao mesmo tempo manter a minha dignidade e respeito próprios.

Gostava de dizer algumas coisas sobre Línguas.A palavra hebraica para língua (ou linguagem) é “Safa”, que também significa “Uma margem”. A nossa língua é um limiar, uma margem ou uma fronteira, uma forma de actuarmos e de compreendemos o mundo. É a tensão muscular da boca e do corpo. A nossa língua são os sons e os ecos de que nos servimos para expressar o nosso ser neste mundo. A nossa língua-mãe toca a nossa compreensão mais profundado mundo.

“Souvenirs de Carmella” foi criado em dois locais distintos:

1.Nodar: uma pequena aldeia rural de 30 habitantes, noconcelho de S. Pedro do Sul. O local da residência artísticaestá emNodar.

2.Castro Daire: a vila mais próxima de Nodar (a cerca de meiahora de caminho).

O trabalho desenvolveu-se em quatro fases: obtenção dasimagens, criação dos souvenirs, venda dos souvenirs e criação dovídeo final do projecto.

Obtenção das Imagens:

“Souvenirs de Camella” teve desde o início uma estrutura clara.Não obstante, à medida que se geravam os encontros com as pessoas, muitas decisões tiveram de ser tomadas. O trabalho em Nodar foi basicamente feliz. Como os habitantes conheciamo Luís Costa e o Rui Costa (da Binaural/Nodar–os organizadoresda residência), eles esperavam acções diferentes do habitual na aldeia. As pessoas de Nodar aceitaram a estranheza de Carmella e colaboraram com ela de bom grado.

As pessoas de Castro Daire foram mais desconfiadas em relação a Carmella, muitos pensando que ela os queria enganar. Alguns relacionaram-se com ela como se ela fosse louca.

Venda dos Souvenirs:

A venda em Nodar enquadrou-se numa série de acções artísticas que tiveram lugar na margem do rio, numa tarde de Domingo plena de sol. A atmosfera era segura e feliz. Ainda assim, as pessoas de Nodar,especialmente as mulheres, cooperaram muito mais do que eu esperava. Elas sentiram-se felizes por “jogarem o jogo” que eu lhes propus. As mulheres compraram muitos souvenirs ao preço de uma canção portuguesa por cada souvenir. Um momento maravilhoso aconteceu quando uma das mulheres começou a cantar e as restantes a acompanharam.Uma canção dava lugar a uma nova canção e eu senti que aquelas mulheres estavam desejosas por uma oportunidade para poderem cantar de novo, juntas na margem do rio. Um hábito feminino que existiu até há alguns anos atrás, antes de máquinas de lavar e televisores fazerem parte das casas.

A venda em Castro Daire foi diferente. Carmella foi até lá num dia de mercado. No jardim principal, apenas duas raparigas cantaram canções e todas as restantes estavam desconfiadas.

No próprio mercado, local onde os vendedores já conheciamCarmella, embora desconfiados aquando da recolha de imagens,desta vez pareciam felizes em reencontrá-la. A confiança gerada por um reencontro permitiu-lhes uma maior abertura. Uma mulher cantou uma canção, seguida de uma outra para a sua amiga que não sabia cantar. Outra mulher dançou, um homem assobiou e um outro recitou um poema.

A ideia das canções não era clara no início do projecto, tendo-me ocorrido durante o decorrer do trabalho. Queria usar a venda como uma acção de troca, que desencadeasse junto dos compradores uma acção que expusesse as suas memórias privadas. Pensei em dar algumas alternativas, mas a fronteira crucial da língua exigia clareza. Depois de ter ouvido uma mulher cantar, tornou-se claro que canções eram aquilo que ira pedira os compradores.

Foi interessante experimentar a possibilidade de compreensão recíproca sem falar a mesma língua e sentir os lugares que estão fora do alcance sem uma língua comum.

A confiança abre e permite escutar para além do simples sentido auditivo.

Criação do Vídeo:

Pretendendo mostrar em simultâneo sentimentos de pertença ede solidão na vida de Carmella, escolhi a criação de dois vídeos correndo em simultâneo num “loop” sem fim.

No ecrã da direita, Carmella é vista a deixar a aldeia, carregando a sua mala de viagem, a mesma que usou para vender os souvenirs. Caminhando devagar pela estrada, subindo a encosta,ela segue até desaparecer da vista, apenas para aparecer denovo a abandonar a aldeia. Uma e outra vez, numa despedida sem fim.

No ecrã da esquerda, Carmella é vista “a trabalhar”. Ela está em permanente contacto com pessoas, falando, comunicando,tirando fotos, vendendo os seus souvenirs, ouvindo as canções,despedindo-se,saindo. Também neste vídeo, o “loop” força Carmella a uma nova chegada, comunicar, vender e a despedir-se. Uma e outra vez.

Notas Finais:

Agradeço à gente corajosa de Nodar e de Castro Daire pela abertura que concederam a si mesmos.

Agradeço à Binaural/Nodar o apoio constante e empenhado.

Agradeço a todos os restantes artistas na residência por terem-me ajudado da forma que puderam. O trabalho foi intenso eteria sido impossível fazê-lo sozinha.

Vered Dror é uma artista visual que utiliza diversos meios, combinando artes performativas. Nasceu em Tel Aviv, estudou e viveu em Jerusalém, tendo regressado recentemente a Tel Aviv. No seu trabalho Vered Dror explora a relação entre a esfera pública e as pessoas privadas actuando na sua vida no âmbito dessa mesma esfera, jogando com as fronteiras entre as duas e com a forma como se ambas se alimentam entre si.

Frequentemente a artista escolhe focar-se em pessoas ‘simples’, cuja vidas e desenvolve na fronteira difusa e mutável entre a esfera privada e a esfera sócio-política. A sua identidade é formada e reformada constantemente através de mecanismos de resistência e de aceitação.

Estes temas podem ser encontrado nos seus trabalhos,desde o último “Private Home” no qual estampou graffitis Brielle em 3D nomeando e marcando como “privadas” as áreas de dormir de pessoas sem-abrigo, até “Street Tales” (Neighborhood Projects, Train Theater, Jerusalem, 2006) em que diferentes lugares de um bairro foram renomeados de acordo com histórias privadas e memórias da zona contadas pelos seus habitantes. Em “Balcony Tales” (San Salvario mon Amour,Torino, 2005) os habitantes de um prédio estavam ligados através das suas varandas por fios de roupa estendida e cestos e eram convidados a partilhar memórias, alimentos, etc.

OBRAS ARTÍSTICAS