Walk[s]

Quando os artistas sonoros que trabalham em fonografia e gravações sonoras, descrevem como chegaram até essa vocação,não é raro ouvirmos histórias sobre as suas experiências pessoais,dos momentos fundadores de quando emergiu a consciência acerca do ambiente sonoro… Quanto a mim, lembro-me perfeitamente de momentos intensos de escuta, mas a minha iniciação às gravações sonoras aconteceu mais por acaso. Por não saber tocar qualquer tipo de instrumento acabei por utilizar microfones. A transformação de sons, a estranheza que adquiriam ao serem transpostos para altifalantes eram suficientemente fascinantes para mim, mas não era capaz de produzir sons sem ter de os gravar.Então,o meu trabalho com sons não se tornou necessário a partir da minha experiência de escuta.Em vez disso,foi o trabalho prático,um pouco ao acaso,com os sons,que, pouco a pouco,afectou a forma como eu ouvia.Em última instância, ficou claro que a minha escutatinha mudado, que eu estava impregnado nela, o queiria mudar o meu percurso e abordagens, primeiro o uso que faço do meu corpo e depois o uso que, através disso, iria fazer do mundo.Isto é como penso que voltei a questionar a minha prática enquanto artista sonoro e como a composição dos sons do ambiente se tornou, por necessidade,compor como ambiente, ou seja, no âmbito da interacção entre o corpo e a sua envolvente, de acordo com um lugar, de acordo com um uso do espaço. O que eventualmente ficou claro foi que a escuta tinha que ser feita com todo o corpo, o corpo físico, assim como o corpo social.

Quando ouço o mundo de outra maneira, o mesmo muda, e a forma como então aparece, já me transmite algo diferente do que eu habitualmente conhecia. A transformação das minhas abordagens perante o mundo, da forma como vejo ou ouço é,portanto, capaz de transformar o meu conhecimento do mundo, é capaz de perturbar o que eu teria tomado como verdade,pela evidência da percepção.Tal reconsideração da verdade perceptual testemunha a presença de uma enunciação do mundo antes da percepção, um discurso sobre o mundo que seria encontrado na própria percepção.No preciso momento em que ouço o “camião a passar” (“truck passing by1”), estou realmente a dar razão a um discurso sobre o mundo:aquele que me diz que camião é esse, e qual é o papel objectivo que desempenha na relação comigo. Normalmente, eu não tenho que identificar ou questionar os temas do conhecimento e do discurso que aí aparecem: “Eu ouço o camião a passar”,essa é a verdade.Mas a construção-social e ideológica–imaginária que uma enunciação como esta representa é clarificada quando eu realmente ouço aquele som,de forma suficientemente activa para desaprender o que eu sei sobre camiões, de modo a perceber apenas o fenómeno sonoro, a vibração acústica.

De forma semelhante, a ideia de “paisagem” permite-nos reavaliar como o nosso conhecimento do mundo modifica a forma como estamos realmente a apreendê-lo.No seu livro “L’invention dupaysage2”,Anne Cauquelin questiona a sensação evidente que experienciamos quando estamos perante uma paisagem,como a mesma pode inclusive “mascarar” um conhecimento “impensado” ou “desconhecido” cujas raízes se podem encontrar numa representação codificada do mundo. A codificação, como ocorre, é uma representação ideológica da organização do mundo (cuja invenção remonta ao Renascimento) que está a determinar a nossa relação com a paisagem e, através da qual,ainda interpretamos actualmente o mundo.

Por outro lado, quando Murray Schafer introduz a ideia de “soundscape3” (“paisagem sonora”), a sua concepção carece da mesma retrospectiva crítica. A reflexividade entre a descrição do objecto e da posição do sujeito enunciador está longe de ser encontrada. Na verdade, a objectividade da paisagem sonora Schaferiana está impregnada com os valores subjectivos do autor.Sob a sua noção de paisagem sonora está subjacente uma representação do mundo, um discurso pré-determinado, cuja estrutura aparece em alguns lugares no texto, como uma gradação de valores subjectivos que organiza ideologicamente a verdade objectiva.

Samuel Ripault é um artista sonoro e especialista em gravações de campo. É co-fundador da editora de música experimental Universinternational e membro do colectivo Ici-Même Art em Grenoble. Desde o início do século que tem criado inúmeras obras sonoras (algumas das quais publicadas em editoras como Universinternational, And-Oar, Picomedia e Entr’acte), projectos de escuta em diversas cidades,instalações sonoras e peças experimentais para rádio.