Fauna Fonética – Voz Animal

“Uma voz e um violino procuram-se, buscam no encontro possível os ecos de uma animalidade imanente.”

As feras, os lobos, os pássaros, os insectos… desde tempos imemoriais os homens observamos animais, invejam os seus poderes, tem em os seus ataques, imitam com os mais hábeis engenhos os seus privilégios, atribuíram aos deuses as suas nobres qualidades, esculpiram amuletos e objectos mágicos com as suas formas, urdiram histórias e lendas sobre os seus mistérios e perigos, guardaram as suas casas com a sua valentia, decoraram as suas bandeiras e cidades com as suas formas. Amansaram alguns e fizeram-se amigos. Eliminaram outros. Domesticaram outros tantos para sobreviver.

O universo popular, bem como o da literatura e cinema modernos ou contemporâneos (é exemplo disso Kafka), está povoado de maravilhosas e fabulações de metamorfoses e de “devires-animal”, e em todas as sociedades humanas fala secretamente esta voz primitiva.

De um certo modo o homem é essa espécie de negociação constante com a brutalidade da sua condição animal, combate que parece nunca findado e para o qual se mune de todas as ferramentas e tecnologias: as ideias, as armas, as palavras, as sementes, as geringonças, as mentiras, as canções, a política. Hoje, mesmo nas cidades mais sofisticadas onde a natureza parece totalmente domada e contida em desenhos geométricos, invadem-nos as pombas, os ratos, os mosquitos, as formigas, habitam-nas os cães, os gatos, as centopeias.(Uivam na rua miúdos como lobos, enfurecem-se homens com bestas, batem-se e enlouquecem como touros).

Sobre esta presença da voz animal no homem, ergueu-se o nosso projecto, que se estabeleceu nos seguintes vectores: recolha de testemunhos dos próprios habitantes de Nodar sobre a sua fauna, os seus bichos, as suas lendas, as suas histórias, canções, lengalengas em que qualquer animal seja protagonista ou metáfora; manipulação e reconstrução do material sonoro ou visual da recolha para construir uma apresentação performativa multimédia com uma forte componente plástica, numa lógica que, apesar de não ser rigorosamente antropológica, teve como horizonte devolver à comunidade o seu investimento e a sua energia.

A voz humana e a voz animal, o seu encontro e desajustamento, as particularidades da sua convivência com o Povo de Nodar, foram o eixo organizador do projecto, tanto ao nível da produção do material audio-visual-performático, como no tratamento objectual dos dispositivos escultórico-sonoros inspirados na natureza local: nas suas formas, nos seus materiais. Houve um espaço para a improvisação, para a presença e experiência do lugar, do instante. Tendo em conta que é de vozes que tratamos, a herança da poesia experimental, tanto visual como sonora/fonética foi de maior importância já que é difícil esquecer aquilo que a voz humana sempre teve a ver com a escrita; aquilo que a voz animal sempre teve que ver com o corpo e a sua secreta evidência mortal de vitalidade, ou seja, de perenidade.

“Fauna fonética-Voz animal” é um projecto multidisciplinar. A questão da multi disciplinaridade tem tanto a ver com os nossos percursos e com o encontro de dois percursos diferentes, como com a ideia de ir para um lugar fazer uma narrativa que é complicada de expressar e portanto, quantos mais elementos temos para a exprimir, mais sólida ela fica. Não temos essa relação com uma disciplina a aprofundar mas sim com a ligação que existe entre cada disciplina, entre os códigos. Neste projecto é muito evidente que estamos à procura de qualquer coisa que escapa à linguagem. O que escapa à linguagem fica entre as linguagens, e ao juntá-las podemos ver as falhas que existem entre cada linguagem, elas tornam-se evidentes e portanto comunicáveis.

A esse nível funcionamos mais em extensão do que em profundidade, como uma constelação ou um mapa, e não como uma escavação arqueológica.

Decidimos entre nós que a parte mais difícil seria a parte objectual. Criámos o vídeo para criar a temporalidade, criámos os objectos para criar uma base sonora, para deixar que o momento da performance fosse deixado tanto à improvisação como às ideias que foram caindo que eram muito mais interessantes como acto performativo, como a questão da gravação dos balões que foi transferida para o acto performativo.

Perceber como é que acontece a representação dessa animalidade nos idiomas, a animalidade pura e simples de um corpo que está em frente ao outro em adrenalina que por mais que tente construir um discurso enfrenta algo mais forte que qualquer convenção. Queríamos também passar pela questão do lado mitológico e ancestral que este ambiente evoca, também o lado infantil dos sons onomatopeicos, do bicho e do melro que come a formiga.

A animalidade como uma abertura. O espaço performativo como lugar aberto à improvisação é o reflexo dessa condição imanente do animal aberto aos acontecimentos.

Marta Bernardes é uma artista portuguesa baseada em Espanha que trabalha nos domínios da performance e artes visuais e sonoras. Detém o Mestrado em Psicanálise e Filosofia da Cultura pela Faculdade de Filosofia de Madrid. Tem realizado diversos Workshops em Espanha, Portugal, Holanda e Bélgica e apresentado performances em várias galerias portuguesas.

Ignacio Martinez é oriundo de Espanha e trabalha nos domínios da música e escultura. É licenciado em Belas Artes pela Universidade Complutense de Madrid e tem apresentado vários projectos musicais e teatrais audiovisuais em Espanha.

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