A Legend that Becomes Reality

A ideia, nestes momentos de transição, foi reactivar tradições passadas no presente, de forma a questionar o futuro. Uma velha lenda que subitamente reaparece incita a reacções e interrogações.Nesse sentido, fui à procura de algumas lendas e crenças antigas locais de Nodar para posteriormente deixar pistas soltas que pudessem trazer de volta essas histórias ao quotidiano,torná-las realidade.

(Antes de iniciar o trabalho, anotei alguns pontos importantes que deviam ser respeitados)

1. Em primeiro lugar, o projecto deve ser mantido em segredo em relação aos habitantes de Nodar.O seu poder para estimular perder-se-ia completamente se o “projecto” fosse conhecido.

2. A lenda deve ser bem conhecida, mas não demasiado, para que permaneça em território “mágico”. O rumor terá o seu papel neste processo.

3. A lenda pode ser escolhida pelo seu poder metafórico, mas não deve ser demasiado “pesada”

4. A “materialização” da lenda deve ser o mais leve possível. Alguns detalhes, pistas… nada muito evidente. O rumor também aqui terá o seu papel.

5. Levando em conta que o que realmente interessa não é a “realização da lenda” mas a estimulação que a mesma poderá provocar na comunidade, deveremos estar preparados para aproveitar outros caminhos e eventos que seguramente surgirão durante aquele período.

Quando cheguei a Nodar conversei com uma senhora idosa da aldeia que me falou de uma lenda antiga: na montanha em frente da residência artística alguns aldeões teriam visto no passado luzes alampejar, o que interpretavam como sendo bruxas a dançar naquele local. É uma zona muito escura,por não existirem aldeias ao redor e, assim, qualquer luz vinda desse local era vista como sinal de “alguma coisa estranha”.

A minha ideia inicial foi usar sons “esquisitos”, por facilmente poderem ser associados a actividades paranormais.Mas tal ideia não se chegou a concretizar porque o som ambiente, do rio sobre tudo, é demasiado presente.Assim, regressámos à ideia de usar luzes e para tal visitámos uma loja chinesa em S. Pedro do Sul onde comprámos lâmpadas LED baratas que depois colocámos na montanha formando um círculo com sete pontos distintos.Feito isto, regressámos à aldeia e aguardámos. Durante a noite, umas horas mais tarde, ouvimos uma mulher gritar e dois homens a falar sobre luzes. Julgo que ouvimos a palavra “bruxas”.Gravámos esse momento.Então, vieram dois homens falar connosco, porque queriam saber se nós também tínhamos visto as luzes, uma vez que nos encontrávamos num bom local para as ver. Dissemos-lhes que também tínhamos visto luzes e a sua curiosidade aumentou, a ponto de um deles, o mais jovem e audaz, ter mostrado vontade de ir ao encontro delas, enquanto o seu amigo, mais relutante, preferia não o fazer. Pediram-nos para os acompanhar, mas nós fingimos ter receio. Eles acabaram por ir sozinhos, demorando cerca de meia hora para ir e regressar.

Enquanto eles estiveram no local, conseguimos ver luzes em movimento e ouvimos a voz do mais velho a soltar insultos ao vento. Quando regressaram à residência artística oferecemos-lhes cerveja e ficámos a conversar. Curiosamente não suspeitaram de nós e ficámos surpreendidos por terem deixado as lâmpadas intactas.Eles tinham decidido continuar a brincar com a situação, apreciando o facto de todos os residentes poderem vir a ter um susto. Conversámos sobre muitas coisas e eles desenvolveram com grande entusiasmo a lenda das bruxas que dançam mencionando factos que desconhecíamos sobre casas abandonadas naquela área.Assim, a primeira parte do trabalho tinha terminado.O boato tinha-se espalhado e iniciavam-se conversas sobre as luzes, evocando histórias antigas.

A seguir, de forma discreta, devíamos tentar apanhar as reacções dos aldeões nos cafés. Decidimos deixar no local as lâmpadas com o intuito de manter as conversas e as histórias vivas.A partir do momento em que começaram os boatos, as histórias ganharam vida própria e tornaram-se a base para novas narrativas.Agora tínhamos a possibilidade de gravar essas descrições.

No fim, e apesar de tudo, não sinto que o registo documental seja uma necessidade do projecto. Não me importam os vestígios do projecto. Aqui os factos são o essencial.Não vou apresentar este projecto noutro local porque já não há nada para apresentar.O projecto é o que acontece neste sítio.Se isto voltar a acontecer noutro dia provavelmente nunca o saberei.

[A documentação deste projecto consistiu em material disperso entre entrevistas, fotografias,gravações de vídeo de baixa qualidade (gravações nocturnas) e gravações sonoras efectuadas pela Binaural/Nodar].

Cédric Anglaret é um performer baseado em Paris com um foco em acções (ou não-acções) no espaço público, carregadas de ironia e por vezes praticamente invisíveis para o transeunte. Nas palavras de Cédric: “A minha posição como artista é a minha posição como humano. Não sou diferente dos demais. O meu trabalho é composto de uma variedade de proposições e convites para acções, experimentos e micro-eventos. Alguns são colectivos, muitos são individuais. Um passeio de meia hora com os olhos vendados, um passeio em que cada parâmetro é definido ao acaso, quarenta minutos de imobilidade numa sala de espera, convites para partilhar um sorriso, um passeio muito lento num dia de trabalho… Assim que o convite é enviado através de flyers, anúncios classificados, na rádio ou de boca em boca, todos os interessados podem contactar-me. Eles são o público.”