Birdsoundcage é um trabalho que faz parte de Locus in quo – “O lugar onde alguma coisa acontece” – que é o título genérico de um corpo de trabalhos baseados num único tema: o sentido dos lugares.
Nas últimas décadas a nossa relação com os lugares alterou-se irremediavelmente, tornando-se cada vez mais distante de um “sentir-se em casa”, de um reconhecer-se na pertença a um horizonte preciso, que não se materializa necessariamente através da fruição ociosa, mas sim pela inserção num devir social e cultural que marca profundamente os lugares.
Em “Locus in Quo” pretendi evocar e reapropriar-me do sentido dos lugares. Para mim, encetar uma busca do sentido dos lugares significa acima de tudo escavar a terra que piso para tocar as suas raízes, para as conhecer, descobrir e sentir, para reforçar em mim o sentido de pertença aos lugares da minha vida. Neste projecto tencionei analisar como o tempo, a memória (colectiva ou individual) e os genius loci podem concorrer para fixar o sentido de um lugar e como isso, por sua vez, influencia a identidade de um indivíduo ou, mais genericamente, de uma comunidade.
INTRODUÇÃO
Um pássaro que nasce dentro de uma gaiola é um pássaro com as asas mortas.
Um pássaro que nasce dentro de uma gaiola não conhece o significado de voar livre nos grandes espaços abertos, não conhece o mar, a floresta, a cidade. É um prisioneiro do seu próprio ninho. A sua percepção do espaço é bastante limitada em comparação com aquela de um pássaro que nasceu livre, e este factor irá inevitavelmente influenciar os seus hábitos e o seu comportamento. Dentro da gaiola – ninho, o pássaro prisioneiro encontra refúgio, segurança e protecção, apesar do seu interior nos parecer pequeno, apertado, inóspito.
Um pássaro que nasce livre, pelo contrário conhece perfeitamente os espaços abertos. Ele conhece perfeitamente o risco, o perigo, aprendeu a confiar nos lugares. Um pássaro nascido livre e fechado posteriormente numa gaiola está provavelmente destinado a sucumbir, porque de um momento para o outro um poder coercivo força-o a viver o resto dos seus dias num ambiente que vai contra sua natureza e o limita. A gaiola representa um impedimento para a possibilidade de voar.
Na aldeia onde os meus pais tinham uma casa de férias, um dia eu encontrei um pardal que não podia voar. Decidi trazê-lo temporariamente para a cidade no sentido de cuidar dele. Depois de curado, eu tencionava colocá-lo novamente em liberdade.
Ver um pardal fechado numa gaiola, na cidade, era muito estranho. Ainda me lembro do sentimento profundo de inadequação que percorria o meu corpo perante aquela imagem. O pardal estava claramente triste e infeliz, talvez pelo facto de ter a asa partida, ou talvez porque sentia que assim que tivesse a sua asa curada, a sua vida a partir daquele momento seria vivida nos poucos centímetros quadrados disponíveis.
O pássaro recusou-se a comer e pouco se movimentou na sua pequena casa nova. Tornou-se passivo. Cada dia que passava ficava mais escuro, a sua plumagem perdia a cor, até que numa manhã ao acordar, encontrei a sua gaiola vazia: o pássaro tinha morrido e a minha mãe tinha-o dado a comer a um gato.
Essa experiência afectou-me profundamente. Apesar de terem passado quase 20 anos, ainda me lembro perfeitamente daquele episódio da minha infância e os sentimentos nutri pelo pardal. Aquele pardal… um corpo tão pequeno e frágil, que manteve em si o espaço infinito.
Às vezes, quando pensava neste episódio eu perguntava – me o que poderia ter causado a sua morte. Teria sido a asa partida e a dor física, ou a consciência de perder a sua liberdade e, por conseguinte, a perda de esperança?
Birdsoundcage é uma gaiola de pássaro recriada sonoramente numa sala vazia e asséptica. Lá dentro jaz um corpo imóvel, completamente enfaixado, que para sobreviver auto constrói uma gaiola à sua medida feita de próteses. As próteses são obtidas através de ligaduras nos ramos de árvore fixadas nos membros inferiores e superiores. A matéria orgânica de que são feitas as próteses remete para os restos de um ninho, um lugar do passado que já não existe.
A gaiola é um lugar imaginário construído à volta de um corpo, que evoca por sua vez um lugar dentro do corpo, para um estado de ser. A gaiola poderia ser muitas coisas, muitas situações desagradáveis que nós somos inevitavelmente forçados a viver, que nem sempre nos são impostas por outros, mas que nós mesmos atraímos. A gaiola pode então ter um duplo significado. A gaiola é a prisão ou o ninho, depende da nossa abordagem à vida e do sentido que nós damos às coisas. Numa situação de desconforto, tristeza e desespero, a gaiola pode tornar-se em algo de positivo quando a dor nos coloca numa situação de confronto, quando a dor se torna partilha e age sobre a nossa vontade. A clausura, então, pode tornar-se abertura. A perda da liberdade, devido ao facto de haver uma restrição, um impedimento, uma obstrução é uma condição resolúvel. O construir-se uma gaiola com os restos do ninho, para mim, significa aceitar a dor, deixá-la fluir. Significa também relacionar-se com o nosso passado, àquilo que éramos, às nossas próprias experiências, a partir das quais podemos sempre obter novos conhecimentos.
Birdsoundcage é um lugar simbólico ao qual somos convidados a dar um sentido.
DESCRIÇÃO
Birdsoundcage é uma instalação sonora de 4 canais com vídeo.
A instalação sonora recria o ambiente dentro e fora de uma gaiola. Conseguimos ouvir dos quatro lados do quarto o som de um pássaro que se atira contra as grades da gaiola e ao longe o som de pássaros livres, vozes de gente, cães que ladram, etc. Quem entra no quarto terá a sensação de estar fechado numa gaiola, junto com um pássaro.
O vídeo transmitido por um pequeno monitor mostra o processo meticuloso de construção de várias próteses nos membros do corpo da performer.
CRÉDITOS
Conceito e Direcção Artística: Manuela Barile
Gravações Sonoras de Campo & Composição Áudio Multicanal: Duncan Whitley
Câmara: Luís Costa
Montagem Vídeo: Manuela Barile
Produção: Luis Costa e Carina Martins (Binaural)
Apoio: Ministério da Cultura – Direcção Geral das Artes
Cenas de Birdsoundcage, um vídeo de Manuela Barile, 2009
[AFG_gallery id=’121′]