O som górdio: Valores e complexidades da escuta local [1]

Luís Costa
(Coordenador da Binaural Nodar, Viseu Dão Lafões, PT)

www.binauralmedia.org

  1. Sou de onde estou a ouvir

Nodar, São Pedro do Sul, Portugal. Maio de 1968. O início de uma vida contingente e anónima como qualquer outra, num lugar que sempre conheci. Nasci de pessoas que conheciam intimamente esse sítio e cresci a conhecê-lo e a ouvir falar dele. Regressei fisicamente a ele há dez anos, o que não quer dizer que tenha deixado de o conhecer quando não lá vivi. Passei todos estes anos a admirar os agricultores do meu lugar, pelo seu trabalho árduo, pelo seu amor à terra, pela precisão dos seus ritmos cíclicos, pela sua crença em valores tão simples quanto antigos, pela sua independência, liberdade de pensamento e de expressão em relação a todos os poderes: os duros e os brandos, os políticos e os morais.

Em 1975, um ano após a Revolução dos Cravos em Portugal, eu tinha sete anos. As crianças da aldeia de Nodar (ainda) passavam todo o seu tempo livre fora de casa, investigando lugares insólitos, construindo objetos estranhos e falando com os velhos locais. Um desses velhos era o Augusto, que era solteiro, sapateiro e vivia sozinho num palheiro/oficina onde não havia água nem eletricidade (a água da rede e a eletricidade só chegariam à aldeia em 1980, verdadeiros artefactos do primeiro mundo). Augusto tinha um pequeno bigode que me fazia lembrar um certo Adolfo do livro de história; era uma pessoa visceral, amante das bebidas alcoólicas, tendo cada vez menos trabalho ao longo dos anos, por ser preguiçoso e pouco perfeccionista.

Um dia, eu e uns amigos subimos as escadas que davam acesso ao palheiro/oficina do Augusto e registei na memória um postal visual e sonoro de um tempo que já não existe: Augusto caminhava lentamente na escuridão do palheiro, com os seus tamancos a fazer clac clac no velho chão de madeira, enquanto praguejava, assobiava e cantava sob o efeito do álcool que consumia diariamente. Ouvia-se o seu sotaque carregado de alguém que nunca tinha ido à escola e nunca saiu da região. De repente, parou e virou-se para as crianças que estavam à porta a rir-se de tão estranha personagem (é característico de todas as aldeias terem a sua própria personagem) e, com o maior dos sorrisos, disse-nos: “De que se estão a rir, seus malandros?” Nesse momento apercebi-me e senti que existe uma estranha cumplicidade entre o louco e a criança, porque ao contrário dos “adultos normais”, ambos existem para quebrar as regras, para caminhar no fio de Ariadne entre o racional e o irracional, para explorar os limites da liberdade de expressão e de ação.

Estas memórias fixaram-se em mim de uma forma muito particular. Esta última, penso que se deveu ao facto de, mais tarde, ter entendido a realidade como complexa, densa e repleta de situações, pessoas e espaços que se desviam das convenções associadas à normalidade; normalidade essa que é moldada ou influenciada no decurso da vida e das escolhas individuais, o que é quase sempre uma espécie de receita para uma sociedade menos autêntica, mais autoritária e mais superficial. Ainda hoje, Augusto seria um exemplo paradigmático daquilo a que muitos chamam politicamente incorreto, tal era a sua concentração de “estranhezas” (o álcool, a sua linguagem, o seu estatuto de quase eremita). No entanto, para mim, ele foi e será sempre uma pessoa válida (para não dizer amada), pela coragem (desesperada) de não seguir os estreitos cânones sociais de uma aldeia rural remota e conservadora.

E o que é que esta história tem a ver com a prática sonora, para além do clac clac dos tamancos no chão de madeira?[2] Ah, meus amigos, esta história condensa o que significa realmente a escuta local, a partir do interior, a partir das dobras de um corpo quase em estado selvagem, longe de todas as políticas de escuta e de toda a proteção asséptica do património sonoro.

Em termos de património sonoro, e como resultado da ideia de redescoberta do Portugal profundo após a Revolução dos Cravos de 1974, foi dada muita atenção às zonas rurais, quase sempre na perspetiva de captar algo próximo da “alma do povo”[3], útil (presumo) para criar um sentido coletivo de poder popular a partir da consciência das desigualdades históricas entre trabalhadores explorados e proprietários agrícolas. É claro que isso estava longe de ser verdade em muitas regiões rurais portuguesas. Esta narrativa exprimiu-se, por exemplo, na redescoberta de cancioneiros rurais, reinterpretados por jovens músicos das cidades, fascinados pelos estudos etnomusicológicos efetuados nesses anos pelo corso Michel Giacometti para a televisão pública portuguesa. Este processo evoluiu ao longo dos anos para a consciência patrimonial dos próprios territórios e, atualmente, não há município que não seja capital de alguma coisa: paisagem, gastronomia, música, etc., pelo que a cereja no topo do bolo, muito em voga hoje em dia, são as candidaturas locais a património imaterial da UNESCO, para gáudio dos operadores turísticos, dos políticos regionais e nacionais e dos meios de comunicação social.

Todo este contexto pode ser muito bondoso, mas creio que estes processos de “hiper-representação” do mundo rural só servem para diminuir o sentido de densidade, complexidade e liberdade dos próprios espaços rurais. Estão a reduzir a evolução cultural milenar a meros slogans, e o carácter profundamente libertário e individualista é visto de forma suspeita por todo o poder exercido sobre as próprias populações (Bloch, 1930). Há, portanto, um enorme espaço entre o real e a sua representação que deve ser explorado criticamente. Esta é também a utilidade de uma investigação sólida derivada de novas escutas locais.

Tendo em conta estas tensões atuais entre uma modernidade progressista e hiper-representada e um localismo híbrido, feito de arcaísmos, contradições e transformações (Giménez, 1994), optamos por este último, dizendo de forma algo provocatória: não somos progressistas, somos ouvintes dos restos de um passado rural. Somos colecionadores do quotidiano, das idiossincrasias e de improvisações de pessoas e lugares particulares. Somos… conservadores, anti-futuristas, anti-patrimonialistas, anti-utópicos, anti-distópicos, ultra-oidistas, e quase sempre “pacientómanos”.[4]

  1. O ouvinte a meio caminho

Março de 2006. Regresso à nossa aldeia de Nodar, depois de três décadas de emigração na cidade de Lisboa. As primeiras perceções foram obtidas através dos sons. A primeira foi uma batida à porta numa manhã de nevoeiro. Artesãos sonoros[5] começaram a entrar no nosso território rural, com cortesia, aceitação, curiosidade e serviço; estas foram as ferramentas do nosso trabalho. Não apenas o som.[6]

O som poderá ter sido um ponto de viragem ou uma dobra[7] no dicionário das certezas estáveis, pois é um tipo de linguagem íntima, subtil, específica e contingente. Mas há muitos outros tipos de linguagem para uma abordagem a um território, e nós gostamos daqueles que proporcionam uma comunicação sincera e empática com as populações locais. E para isso, o som não é suficiente. É por isso que não queremos ser engolidos pela nova vaga de investigadores sonoros “inteligentes”, tão espertos quanto assépticos. Desconfiamos, por exemplo, dos mapas sonoros globalizados, em que cada som é arrancado do seu contexto como uma criança é arrancada dos braços da mãe.

Continuamos a escavar significados… significados antigos e esquecidos do nosso lugar. Seremos mineiros sonoros, agricultores sonoros, carpinteiros sonoros, marionetistas sonoras; enraizados num canto esquecido do mundo.[8]

E nestes dez anos de acolhimento de artistas sonoros no nosso território rural, compreendemos ainda mais claramente que cada ouvinte é um ser a meio caminho, um mediador, um conetor, por vezes um ser infeliz por não pertencer a 100% ao que ouve, por vezes feliz por viver muitas vidas através do que ouve.[9]

O real ouvido e gravado é assim um sistema complexo feito de decisões, responsabilidades e moralidades fundamentalmente individuais, por mais que se queira compactar essas individualidades numa consciência coletiva. Por isso, o ouvinte escuta mais livremente, escapando a teleologias positivas (utopias) ou negativas (distopias), umas provenientes da engenharia social ou da inovação tão em voga (e tão arriscadas ou mesmo perigosas), outras provenientes de um pessimismo sem remissão.

Entendemos, portanto, a escuta como um mecanismo subtil de revelação e desvelamento; contingente, instável, passível de erro e derivado de mecanismos de perceção fundamentalmente individuais.

A prática sonora não deve ser uma atividade passível de mistificação (som pelo som, o som sem contexto ou mesmo o som idealizado) (Brynjar, 2012). Ou seja, o som pode e deve ser articulado serenamente com outros saberes, sentimentos, escutas e – porque não – olhares; por outras palavras, tudo depende da atenção que é necessário conferir a cada aspeto do real.

Nestes tempos acelerados, ultravisuais e ruidosos, o silêncio, a constância e a humildade perante o real, o ouvido, o pensado, o sentido e o vivido são, por isso, atos necessários, radicais e contracorrentes.

  1. Um xadrez de possibilidades, entre o local (brancas) e o som (negras).

No que diz respeito à nossa condição de animais em permanente dúvida, colocamo-nos diariamente as seguintes questões/angústias na nossa prática de curadoria sonora:

  • Qual é a necessidade de pensar, documentar e expressar criativamente localidades específicas e periféricas (como as rurais) de forma a fazer emergeir valores relevantes, escapando aos clichés da sobre-representação endógena ou do sobre-idealismo exógeno?
  • Quais são as características intrínsecas do som no processo de pensamento e de expressão em contextos locais que possam ir além das tautologias auto-justificativas dos próprios profissionais ou académicos do som?

Claro que gostamos de baixar as expectativas sobre a ambição de ambas as questões através de um processo radical de “contexto e contingência”, um que coloca todas as variáveis em jogo (o artista, o som, o projeto, a prática, o local, a comunidade, a expetativa, a mediação, etc.) num prisma de extrema incerteza e fragilidade. Por outras palavras, esperamos que o encontro entre o ouvinte/artista e o local seja o menos rígido e previsível possível, precisamente porque um dos contravalores dos contextos locais é (ainda) o afastamento das certezas e otimismos progressistas e globais. Trazemos, por isso, o Augusto, com os seus tamancos e o seu hálito alcoólico, juntamente com convidados sonoros improváveis, muitos dos quais já percorreram com confiança os corredores de imponentes templos da arte ou da ciência.

É no valor potencial destes encontros improváveis que – assim o pensamos – se pode desatar o nó górdio deste conjunto de dualidades complexas que deliberadamente provocamos através da nossa prática curatorial (artista/comunidade, local/global, perene/efémero, manual/intelectual, trabalho/arte, racional/irracional, compreensão/mal-entendido, certo/errado, etc.).

Ao trazermos sentidos de “contexto e contingência” para a relação entre o som e o local, pretendemos que “esse local” possa ser também uma tábua de infinitas possibilidades de expressão num duplo sentido: num primeiro momento, pela complexidade inerente (geográfica, sócio antropológica, histórica, etc.) a qualquer lugar, por mais pequeno que seja, e, num segundo momento, pelo conjunto de possibilidades criativas da prática sonora em contexto local, tais como a geografia como meio para a projeção do som; a relação com a voz antropológica; as improvisações na paisagem; o espaço e o som como conceitos descontextualizados; a abordagem ao silêncio ou a obras sonoras sem som; a amplificação do espaço sonoro, entre outros.[10]

Sabemos que falar e valorizar qualquer identidade local é hoje um terreno propício a incompreensões e críticas, dada a emergência de novos receios e tensões resultantes do crescente multiculturalismo, particularmente evidente na “velha Europa”. Mas estamos simultaneamente conscientes de que este problema deve ser enfrentado sem receios, pois não podemos deixar de constatar que não há humanidade sem a procura de uma “inscrição” local e a valorização (mesmo que inconsciente) de realidades persistentes (a casa, a rua, a paisagem, o vizinho, o bar, a família, o clube desportivo, etc.), às quais a prática sonora não pode escapar. Uma situação contrária seria a de uma grande arrogância (Davoudi & Madanipour, 2015).

  1. Escuta necessária

Sob a forma de epílogo, deixamos um breve manifesto de razões para algumas escutas, derivado do caderno das nossas ansiosas investigações:

Ouvir a necessidade, ouvir o que é necessário.
Ouvir de fora do sistema, portanto, ouvir mais claramente.
Escutar, não pensar no poder e na acumulação… Pelo contrário, pensar, em construir espaços de compreensão a partir do carácter dos nossos lugares.
Escuta desde a terra chã, como forma de libertação de ideias pré-fabricadas.
Escutar com temperança, humildade, dúvida e permanência.
Ouvir mais com beleza e menos com eficiência.
Ouvir mais as impressões e as sensações e menos as “ideias puras”.
Ouvir mais as coisas da vida e menos a própria escuta.
Ouvir o que é autêntico, verdadeiro e sensato, venha de onde vier.
Ouvir mais as diferentes manifestações de um lugar e menos uma manifestação de muitos lugares.
Ouvir mais o pequeno, o antigo e o particular e menos o global, o novo e o abstrato.
Escutar o processo inevitável em direção à morte e, portanto, em direção à continuação de muitos dos nossos semelhantes e dos nossos lugares queridos.

 

Bibliografia

Bloch, M. (1930). La lutte pour l’individualisme agraire dans la France du XVIIIe siècle. Em M. Bloch & L. Febvre (Ed.), Annales d’histoire économique et sociale (pp. 321-640). Paris: Armand Colin.

Brynjar. D. (2012). Sobre o som e o contexto, Schloss Solitude. Nova Iorque. Consultado em: http://franzson.com/on%20Sound%20and%20Context.pdf

Costa, L., & Costa, R. (2010). Três Anos em Nodar: Práticas Artísticas em Contexto Específico no Portugal Rural. Portugal: Edições Nodar.

Davoudi, S. & Madanipour, A. (2015). Reconsidering Localism. Londres: Routledge.

De Maupassant, G. (1884). Le vieux, in Contes du jour et de la nuit, [versão pdf]. Consultado em: http://www.quandletigrelit.fr/images/Guy-de-Maupassant-Les-Contes-du-jour-et-de-la-nuit-Le-vieux.pdf

Giménez, C. (1994), El caleidoscopio cultural europeo: entre el localismo y la globalidad. Documentación Social, 97, 9-34. Consultado em: http://www.caritas.es/imagesrepository/CapitulosPublicaciones/636/02%20-%20EL%20CALEIDOSCOPIO%20CULTURAL%20EUROPEO%20ENTRE%20EL%20LOCALISMO%20Y%20LA%20GLOBALIDAD.PDF

Stoller, P. (2009). The Power of the Between: An Anthropological Odyssey [O Poder do Entre: Uma Odisseia Antropológica]. Chicago: University of Chicago Press.

Notas

[1] Publicado originalmente para a Aural, revista chilena de arte sonora, ano de 2017.

[2] Há toda uma linha de associação entre o mundo rural e os tamancos, como símbolo (até sonoro) de pobreza e rudeza na pintura realista e pós-impressionista do século XIX (Julien Dupré, Vincent Van Gogh, Jean François Millet, etc.) e na literatura. A título de exemplo, recordo uma passagem do belo texto Le Vieux, de Guy de Maupassant: “A barreira arborizada abriu-se; entrou um homem, talvez com quarenta anos, mas que parecia ter sessenta, montado, retorcido, caminhando com passos largos e lentos, sobrecarregado pelo peso de sacos de tecido completamente cheios”. De Maupassant, G. (1884). Le vieux, in Contes du jour et de la nuit, [versão pdf]. Consultado em: http://www.quandletigrelit.fr/images/Guy-de-Maupassant-Les-Contes-du-jour-et-de-la-nuit-Le-vieux.pdf

[3] A este respeito, as campanhas de dinamização cultural e de ação cívica desenvolvidas em todo o país rural pelas forças armadas nos anos do chamado Período Revolucionário em Curso (PREC), entre 1974 e 1976, permanecem nos anais dos grandes equívocos históricos portugueses. Vd. Almeida, Sónia Vespeira de, 2009, Camponeses, Cultura e Revolução: Campanhas de Dinamização Cultural e Ação Cívica do MFA (1974-1975), IELT-Colibri, Lisboa (prefácio de João Leal e posfácio de Vasco Lourenço).

[4] Neologismo derivado de “paciência”.

[5] Estes são os artistas sonoros que começaram a chegar ao nosso território a partir de 2006. Chamo-lhes artesãos sonoro por analogia com o trabalho artesanal rural, mas também pela preferência que damos às interações materiais e manuais. Ou seja, não gostamos de imaterializar/mentalizar demasiado a pesquisa sonora, por isso tentamos promover a redescoberta de tangibilidades antigas, do andar, do bater, do pegar, do suar.

[6] Os primeiros anos de trabalho sonoro regular da Binaural – Associação Cultural de Nodar na aldeia de Nodar e em aldeias vizinhas foram amplamente documentados no catálogo retrospetivo: Costa, L. & Costa, R. (2010). Três Anos em Nodar: Práticas Artísticas em Contexto Específico no Portugal Rural. Portugal: Edições Nodar.

[7] Dobra num sentido deleuziano.

[8] Aqui estamos a tentar desesperadamente resgatar um sentido perdido de artesanato nas artes sonoras, fazendo uma associação livre entre a enxada do agricultor ou a picareta do mineiro e o microfone e a perche do artista sonoro.

[9] O conceito do etnógrafo (que inclui o ouvinte de qualquer contexto geo-social) como estando entre contextos, ou in-between, foi abordado em pormenor na primeira pessoa por Stoller, P. (2009). The Power of the Between: An Anthropological Odyssey [O Poder do Entre: Uma Odisseia Antropológica]. Chicago: University of Chicago Press.

[10] Em “Três Anos em Nodar: Práticas Artísticas em Contexto Específico no Portugal Rural” desenvolvemos uma matriz empírica das possibilidades sonoras que identificámos em conjunto com os muitos artistas sonoros que acolhemos na nossa região desde 2006: Costa, L., & Costa, R. (2010).