“Não há futuro sem memória do passado.”
Caterina Resta

As aldeias abandonadas são lugares que a sociedade moderna tende a ignorar ou quer esquecer. São considerados lugares mortos e inúteis, um sinal de falhanço. Estes lugares representam um passado completamente esquecido. Actualmente estas aldeias deixaram de ter significado.

“Cá” é um projecto que pretende devolver um significado a estas aldeias. As aldeias abandonadas são lugares com uma forte identidade, são lugares vivos apesar serem desabitados, embora agora a natureza os absorva progressivamente. São lugares que estão ainda vivos, carregados de memória. Eles podem ser uma ponte com o passado… o nosso passado.

Hoje a nossa relação com a memória está muito mais ligada a uma lógica museológica embalsamada, que entende essa memória como arquivo e não como continuação.

A memória não se deposita como uma série de dados disponíveis num arquivo, que basta consultar quando se precisa. A memória não é um centro comercial onde mais ou menos ordenados jazem velhas ferramentas abandonadas agora inutilizadas. A memória é algo mais: é uma herança que somos chamados a aceitar, tendo em vista o futuro.

“Cá” não é um trabalho assente numa estética de ruína, mas sim uma intervenção que propõe um modo de reapropriação destes lugares abandonados.

Em Março de 2009, iniciei uma viagem em busca das aldeias abandonadas na área do Maciço da Gralheira (S. Pedro do Sul), uma zona de Portugal onde resido há quatros anos.

Foi uma viagem íntima, profunda, mínima, marcada por vezes por derrotas e renúncias. Foi uma viagem que mobilizou a minha subjectividade, que me pôs em discussão, que desencadeou interrogações e dúvidas. Esta viagem não se destacou da minha vida, mas fez parte dela e concretizou-se nas histórias que ouvi contar, do que me aconteceu e das pessoas que tive oportunidade de encontrar. Para mim, estes encontros foram autênticas revelações.

Andar em busca de um lugar que pertence ao passado significou para mim começar um percurso em direcção às minhas próprias origens. Mas ir em busca de uma aldeia abandonada é mais do que isso. É uma viagem em direcção à morte. Mas isso não me assusta. Para mim, a morte é uma experiência de conexão e de fluxo com o legado que outros nos deixaram.

Chegando a estas aldeias abandonadas percebe-se imediatamente uma sensação de morte, mas ao mesmo tempo de algo que continua a viver subtilmente e nos acolhe. Estas aldeias aparentemente fora do tempo conservam sinais de vida. São um reservatório de memória.

A sociedade contemporânea ignora as aldeias abandonadas porque pretende remover a morte da vida. A morte hoje não se encontra na realidade quotidiana como acontecia nas sociedades arcaicas. Por um lado, quer-se fazê-la desaparecer (pensamos nas imagens vitais oferecidas pela publicidade que dão uma imagem de beleza e saúde permanente), por outro lado quando se torna visível, é tão espectacularizada que parece improvável (pensamos em algumas imagens dos jornais e da televisão com cadáveres expostos descaradamente). Provavelmente esta forma de expor a morte é uma forma de exorcizá-la: existe a morte, mas é sempre a dos outros, é remota, e, portanto, pode ser vista e tolerável.

Na nossa sociedade a morte é, portanto, qualquer coisa de inaceitável, qualquer coisa para remover, não é mais considerada um completar da vida, como fluxo. Talvez é também por isto que hoje existe esta tendência de alguns investidores em fazerem renascer as aldeias abandonadas, as “aldeias fantasma”, através do turismo. Isto para mim é muito difícil de aceitar porque muitas vezes estas acções degradam ou esquecem a essência, a autenticidade silenciosa dos lugares.

Existe esta ideia geral de que o passado deve sempre ser reconstruído. Não… eu julgo que o passado é sempre actual, o passado está sempre dentro de nós, o passado é memória, o passado não está morto como a morte não é o fim, é a continuação. Portanto o meu objectivo em “Cá” não foi fazer renascer o passado, mas herdá-lo de alguma forma. Herdar o passado significa sentirmo-nos sermos capazes de torná-lo mais actual, dando-lhe novas formas, significa continuar o que os outros nos deixaram e tornarmo-nos testemunhas de uma história a preservar e a continuar.

“Cá” pretende seguir o trilho, colher, interrogar os sinais de vida e de memória, onde tudo parece acabado. Seguir os trilhos da memória significa uma reapropriação das próprias raízes para restabelecer a ligação àquele sentido de autenticidade que se vai perdendo.

DESCRIÇÃO

“Cá” é uma instalação vídeo em dois ecrãs (Cá#1, Cá#2). Esta instalação faz parte de “Locus in Quo”, um projecto multidisciplinar sobre o sentido dos lugares concebido em 2009. “Cá” combina gravações de campo, “extended vocal techniques” focalizadas na relação entre voz, paisagem sonora e propriedades acústicas dos lugares, com performance e vídeo – arte.

– “Cá #1” mostra uma “mater” dolorosa, a qual, com passo solene, anda lenta e silenciosa através das ruas de uma aldeia abandonada. Sempre que ela se aproxima de uma casa, as suas paredes choram água. Uma vez chegada dentro de uma casa, ela encontra os restos de um antigo feixe de milho, provavelmente parte da última colheita feita na aldeia. Em seguida, começa um ritual de lamentação fúnebre. Na fúria destrutiva da lamentação, Maria vive uma morte simbólica para dar vida a uma nova Maria, a qual absorveu o conhecimento da aldeia e se dirige para longe para continuar a tradição.

Entre o paganismo e o cristianismo, o vídeo mostra a imagem de Maria como lamentadora no acto de padecer a morte: a morte da aldeia, símbolo do mundo antigo, representado pelo feixe de milho. O vídeo é construído em torno de alguns tableaux vivants, poses estáticas perto das portas, janelas e paredes de casas vazias que expressam, de um modo claro, simples e eficaz, conteúdos muito complexos. O objectivo é mostrar o presente, para torná-lo mais “real”. Os tableaux vivants alternam com imagens das paredes que choram a passagem da mulher, eles são de uma cor diferente do resto do vídeo: é uma forma de isolar essas imagens, sentidas como “necessárias” para enfatizar o sentido trágico da história contada.

A lamentação, o ritual do choro vinculado à colheita é um dispositivo para superar o trauma da morte, para dar forma à dor e as memórias relacionadas com o desaparecimento; é uma etapa fundamental para encontrar a força para continuar a viver.

Portanto, a mulher na agonia da dor é portadora de vida. Como testemunha, estão as palmas das mãos, cor de cobre, onde ainda cresce erva. O cobre na alquimia é o símbolo da força vital e da água, a água que ainda corre para a aldeia abandonada três vezes por semana para continuar a irrigar os seus campos abandonados. A água que cai das paredes tem, portanto, dois significados: o sofrimento e a morte, mas também a força e o renascimento.

– “Cá #2” é um vídeo projectado numa parede composto de imagens que captam a realidade das aldeias, a sua desolação e abandono. A abordagem é analítica e detalhada. O vídeo descreve aquilo que os olhos vêm, os elementos superficiais… a pele do lugar. Uma dimensão inquietante e imprevisível manifesta-se na paisagem na qual a escuta, a quietude e a calma predominam, na qual os sons do ambiente e a voz intensificam e amplificam esta característica. A composição sonora constituída por sons da voz da performer gravados em campo e captados com microfones binaurais nas aldeias abandonadas, por sons das aldeias abandonadas e por música tocada pela Sociedade Filarmónica de Santa Cruz de Alvarenga (Arouca) captada numa festa na aldeia de Parada de Ester (Castro Daire).

CRÉDITOS

Conceito e Direcção Artística: Manuela Barile
Performer Vocal e Composição Sonora: Manuela Barile
Gravações Sonoras de Campo: Manuela Barile
Registo e Montagem Vídeo: Manuela Barile
Assistentes de Câmara: “Cá” – João Rodrigues (Portugal) e Luís Costa (Portugal),
Fotos: Manuela Barile
Música: “Cá” – Banda Filármonica de Alvarenga (Portugal)
Pós-produção de Som: Rui Costa (Portugal)
Guarda-Roupa: Brazukinha (Viseu, Portugal)
Residências Artísticas: Centro de Residências Artísticas de Nodar (Portugal)
Produção: Luis Costa e Carina Martins (Binaural)
Apoio: Ministério da Cultura – Direcção Geral das Artes

Fotos do local de filmagens de “Cá”

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Video stills de Cá #1

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Video stills de Cá #2

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Vista da instalação “Cá” no Museu da Bienal de Cerveira, Vila Nova de Cerveira (Portugal). Foto de Maile Colbert, 2009

Cá by Manuela Barile

Vista da instalação “Cá” no Museu da Bienal de Cerveira, Vila Nova de Cerveira (Portugal). Foto de Carina Martins, 2009

Cá by Manuela Barile

Cá by Manuela Barile

Cá by Manuela Barile

Locus in quo: Cá by Manuela Barile