Zapatos de Mi Pueblo

“Sapatos da Minha Aldeia” é um projecto no âmbito da minha investigação plástica orientada em torno da relação entre corpo e espaço como modo de conhecimento que amplifica a nossa percepção do mundo.

O seu enfoque está na relação entre arte e vida, dadas as características formais do processo de recolha do material nomeio imediato, resultando numa instalação que identifica e vincula o sujeito com o objecto.

Utiliza, para isso, diferentes meios disciplinares dentro da prática artística, a qual se constitui numa linguagem essencialmente polissémica e transfronteiriça.

Este trabalho, realizado no âmbito temático da fronteira possui uma relação íntima com a minha história pessoal. As fronteiras espácio-temporais são linhas abertas pela memória e imaginação.

DIÁRIO DE CAMPO DE UMA VIAGEM A PÉ

Vivências durante a residência artística em Nodar, Fronte(i)ras-Setembro 18-Outubro 01 2007.

18/09, 10:30 AM

Realizei um pequeno percurso pelos arredores da aldeia, visitei o rio Paiva e o transitar quotidiano dos aldeões pelos espaços comuns.

Encontrei algumas pessoas à espera da carrinha do pão que chega sempre à mesma hora; outras estavam a ver a caixa do correio, à espera da carta de algum familiar ou talvez uma factura de algum serviço.

Uma senhora bastante idosa que vestia de negro (coisa muito típica) levava uns sapatos desportivos (totalmente atípico),arrancava à mão as ervas daninhas que cresciam entre a calçada de uma rua, repetindo constantemente: Malditas ervas! Malditas ervas!

As cores de Nodar são muito particulares. A vegetação possui uma paleta de tons acinzentados e verdes escuros com alguns ramos violáceos, as suas terras são de um ocre quente e as pedras são maravilhosas e brancas esculturas naturais.

Há muito xisto, muita madeira e muita textura, tanta como para rebolar-se nela.

Num corrimão próximo de um tanque estava pendurado um parde sapatos brancos atados a ele, talvez a secar, talvez só desfrutando da esplêndida paisagem do rio.

12:00 AM

Encontrei uma casa em ruínas.

Tinha uma mistura de materiais entre os elementos ali encontrados: terra, pedras, bocados de madeira, teias de aranha,velas e objectos pessoais.

Objectos que contam histórias.

Um sapato de verniz de uma menina de 5 anos, outros de salto alto pertencentes a mulheres de 30 ou 40 anos, alguns usados nas lides do campo pertencentes a homens jovens, cada um carregado dos seus próprios sonhos.

A disposição daqueles objectos ímpares num recinto abandonado traz-me as imagens de um passado, talvez não muito remoto, onde palpitava vida e movimento.

Agora sopra umar de desolação e esquecimento como se as pessoas que ali viviam tivessem desaparecido tal como o tempo no qual caminhavam por essas escadas nos seus percursos quotidianos e familiares.

O som dos risos e dos utensílios da cozinha cedeu o seu lugar ao silêncio.

19/09,5:00 PM

Comecei a pedir emprestado o calçado das pessoas da aldeia.

Em geral, a maioria manifestou interesse em colaborar com o projecto. Só algumas se mostraram cépticas e reticentes perante a ideia de mostrar a sua intimidade através de um objecto tão pessoal. Resistência que costumam manifestar aqueles quem vêem de grandes núcleos urbanos ou metrópoles e que estavam de passagem por Nodar.

Nestes lugares há uma desconcertante quantidade de vinhedos.Todas as casas têm o seu mas tambémtodos os caminhos estãorepletos de uvas, brancas e negras, maduras e doces e esseinconfundível aroma que é libertado acompanha-me no meucaminho até casa.

É difícil descrever o aroma ou o som de Nodar. É uma mistura fabulosa de uvas, bosta, cabras e folhas de figueira embalada alternadamente entre o som dos chocalhos de um rebanho longínquo e o correr da água por entre as pedras. Cheira a terra,a estação do ano, a trabalho, a tempo. Cheira aos meus avós e à minha infância.

O tempo ali só leva o passo de si mesmo, sem pressas, com cada queda de folha, com cada sopro de brisa.

“Com o candeeiro voltamos à protecção do adormecimento da vigília das casas de antigamente, casas perdidas mas que nos nossos sonhos continuam a ser fielmente habitadas”.

Artista portuguesa, vivendo há largos anos na Venezuela, onde estudou e desenvolve o seu trabalho. Com formação universitária recente em artes plásticas, ramo de escultura, tem um percurso diversificado de mais de 20 anos de estudos e de exposições colectivas de fotografia, escultura,instalação e cerâmica. Com a sua última exposição individual, a instalação site-specific “EspacioVivido” que decorreu no Centro de Estudos Latino americanos de Caracas, a qual se baseou na utilização de elementos perceptuais no espaço escultórico, a artista pretendeu interpelar as formas de ver, convocando o olhar como construção de novas linguagens, a partir de estruturas que parecem esgotadas num transitar quotidiano.